quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Dois livros obscenos recentes

http://e-papers.com.br/produtos.asp?codigo_produto=1573&promo=0

http://www.collegepublications.co.uk/tributes/?00007

Livro sobre os Acciaiolis

Podem baixar; tá bonitinho, é todo ilustrado — e é de graça.

http://www.sendspace.com/file/617sbl

sábado, 20 de setembro de 2008

Uma aula

Pra vocês verem minha cara feia, e minha voz de cana rachada...

(Aula que dei em 19.9.08.)

Meu clínico determinou que devo perder dez quilos.

domingo, 31 de agosto de 2008

Montegufoni, 30 de agosto de 2008


Tem história desde o século X. No século XII, Gugliarello Acciaioli comprou as terras, e lá construiu uma torre e umas casas fortificadas. Pertenceu aos Acciaiolis até 1837, quando morreu o marquês de Novi, último da linhagem, Nicola Diacinto Acciaioli de Vasconcellos.

A torre visível na foto data de fins do século XIV, e foi construída por Donato di Jacopo Acciaioli, gonfaloneiro várias vezes em Florença e barão de Basciano.

No portão, o leão dos Acciaiolis e o galgo dos Altovitis — Anna Maria Altoviti foi mulher de Donato Acciaioli, no século XVII; era poetisa.

Monteguffoni, monte dei guffi, morro dos corujões. Mas só ouvi de longe o pio de mochos, nada mais.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Brancaleone da Norcia


(...ou a história de alguns antepassados de capa-e-espada.)


Personagens de histórias de capa e espada; é a parte divertida dessa gente.

Começo em Guidalotto Acciaioli, filho de Acciaiolo Acciaioli, que aparece citado entre os que se envolvem na guerra contra Arezzo em 1290. Casou-se com Ghisella … , cujo sobrenome se desconhece. A linha principal da família descende de seu filho primogênito Mannino, ou Tommaso.

Foi neto de Guidalotto, através de um seu outro filho com o nome de Niccolò o grande Nicola ou Niccolò Acciaioli, filho de messer Acciaiolo Acciaioli, banqueiro do rei de Nápoles, e de sua mulher Guglielmina de' Pazzi, e feito Barão de Basciano pelo rei Roberto de Nápoles. Nicola Acciaioli, filho de Guidalotto, está entre os cidadãos de Florença que se armaram, em 1289 e 1290, para combaterem Arezzo. Participou da senhoria de Florença como prior em 1289, 1294 e 1298, e como trazia o título de giudice, juiz, presume-se que fosse doutor em leis.

Seu filho messer Acciaiolo Acciaioli fundou a filial do banco Acciaioli em Nápoles. Filho natural do juiz Nicola, quando, em 1313, visitando Gênova, Henrique VII de Luxemburgo era celebrado pelos Dorias, que assumiam as armas com a águia imperial em sua homenagem, este messer Acciaiolo Acciaioli era listado como rebelde na sentença promulgada pelo imperador contra os florentinos.

Mais precisamente, enumera a sentença:

Dardanus et Lelmus fratres de Acciaiuolis; Montemanni et Acciaiuolus quondam Niccoli de Acciaiuolis; Tile, Bindus, Ugho et Pierus Oddi de Acciaiuolis.

A sentença de Henrique VII de Luxemburgo data de 1313; os condenados, entre os Acciaiolis, são Dardanno, principal partner do Banco Acciaioli; seu irmão Leone (“Lelmo”) Acciaioli, que é inclusive ancestral do ramo luso-brasileiro; Monte filho de Mannino — pai do bispo Angiolo Acciaioli, o que expulsa de Florença o podestà Gauthier de Brienne; messer Acciaiolo Acciaioli, grão-senescal. Os demais citados ou são obscuros ou são personagens de identificação difícil.

Sentença inócua, por sinal. Messer Acciaiolo fixa-se em Nápoles depois de 1311; em 1335 o rei Roberto de Nápoles nomeia-o como seu vicarius, enviado, em Prato. Mesmo assim, exerce cargos na senhoria de Florença, em 1322 como prior e em 1332 e em 1337 como gonfaloneiro di compagnia. Riquíssimo devido à sua proximidade aos reis de Nápoles, a Roberto e sua sucessora Giovanna I, morreu depois de 1349, tendo testemunhado a ascensão de seu filho Niccolò, o futuro grão-senescal.


Niccolò Acciaioli, grão-senescal de Nápoles.

Nasceu Nicola ou Niccolò Acciaioli em Montegufoni em 12 de setembro de 1312, e faleceu em Nápoles em 8 de novembro de 1366. Litta, com outros historiadores, afirmam haver sido Niccolò Acciaioli o maior estadista de seu tempo; foi grão-senescal do reino de Nápoles, vice-rei da Apúlia, Conde de Melfi e Malta, Conde da Campanha, em Roma, Senador de Roma, etc. etc. Recebeu de Inocêncio VI a Rosa de Ouro, havendo sido o primeiro cidadão privado, não ligado pela família a uma casa real, assim homenageado. (No século XIX, Izabel a Redentora, sua longínqua parenta, recebeu a mesma homenagem, devido à libertação dos escravos no Brasil.) Sua linha está extinta na varonia, mas persiste até hoje na nobreza de Nápoles.

Breve resumo da biografia de Nicola ou Niccolò Acciaioli, o grão-senescal. Não lhe faz justiça. Vou juntar boa porção de carne agora, sobre este esqueleto.

Começo no nascimento. Nicccolò Acciaioli nasceu ao amanhecer, no dia indicado de 1310, em fins de um verão, em Montegufoni, a casa di signore que os Acciaiolis possuíam em Val di Pesa, entre Florença e Siena…

Não, não está bom. Vou tentar descrever como vejo sua biografia, na minha cabeça. Primeiro, vejo uma tela em cinemascope, em technicolor, e música de Elmer Bernstein, fanfarras. Aí, sobre a paisagem toscana, o céu azulíssimo, as montanhas ao fundo — Vita di Niccolò Acciaiuoli, grandissimo personaggio. Ambiente quase de filme épico, filme de faroeste épico (se bem que, em italiano, acaba sendo western spaghetti. Mas, bem que dava para Clint Eastwood representá-lo, ao nosso Niccolò.) De repente, e inesperadamente, do fundo, correndo em seus cavalos, cavaleiros com armaduras da cabeça aos pés, e, à sua frente, chegando-se ao primeiro plano, um que traz uma bannière, bandeira quadrada, branca e carregando o leão de azul dos Acciaiolis. É Niccolò.

(Mas minha cabeça me prega peças: queria algo épico, fosse como filme de Errol Flynn, ou, talvez, de Mel Gibson, Braveheart, ou The Patriot. Mas a cena que se me aparece é mais como L’Armata Brancaleone, e, ao levantar a viseira do elmo, Niccolò revela, surpresa!, o rosto de Vittorio Gassmann…)

De qualquer forma, tento roteirizar a vida de Niccolò. Daria um belo filme de capa e espada. Mesmo se tratado à Brancaleone da Norcia.

Niccolò Acciaioli nasce em Montegufoni, no fim do verão de 1310. É criado entre o castelo da família, nos campos, e o palazzo dos Acciaiolis, contruído por messer Leone de’ Signori no século XIII, em Florença. Casa-se aos dezoito anos com Margheritta degli Spini. (Corta para a cena do casamento, baseada, talvez, num livre d’heures: a noiva, vestida de veludo azul com debruns prateados, em homenagem às cores da família do noivo, e este como um Romeu clássico, talvez o de Leslie Howard, menos que o de Zefirelli. Mas um Romeu garoto, não velhusco feito o Howard.)

Aos vinte e um anos o pai, banqueiro do rei Roberto de Nápoles, envia-o para a sucursal napolitana do banco familiar. Niccolò chama a atenção de Caterina di Valois-Courtenay, a imperatriz titular de Constantinopla, viúva, cunhada do rei. Tornam-se amantes. (Catherine Deneuve, hoje, seduzindo um rapazote? Cenas de cama, os amantes nus, mas tudo visto à distância, entre véus? Ou a Atia do Roma da hbo, pegando um garotinho? Ao fundo algo bem lugar comum, a baía de Nápoles à noite?)

Niccolò Acciaioli sobe rapidamente no ambiente da corte de Nápoles. Torna-se o administrador do principado de Taranto, apanágio de um ramo da família real, e recebe em doação, como senhorio, Prato, depois da morte de Acciaiolo, seu pai. É feito Barão da Moréia, e para lá parte em 1338. (Cenas marítimas, um navio precário, Niccolò-Brancaleone na proa olhando o horizonte, mar agitado mas sem sinal de tempestade.) Lutas, batalhas (cenas tomadas a Brancaleone ainda?) Niccolò concebe seu lema,

Nil pavebit occursum.

Ninguém faz medo ao oponente. E o oponente é Niccolò.

Niccolò Acciaioli volta a Nápoles, cheio de riquezas pilhadas na Grécia, e parte para Florença, onde fica até 1342. Volta a Nápoles, no meio de uma tremenda intriga de corte. (Aqui a cena em minha cabeça é, muito honestamente, chuchada de Brancaleone, a corte de Nápoles é como a corte bizantina no filme de Monicelli, as mulheres de olhos muito pintados de preto, unhas longuíssimas, gestos estranhos — e lúbricos até a gente não se segurar mais de tanto riso.) É o momento da grande crise da sucessão do rei Roberto.

Roberto morre em 19 de janeiro de 1343, deixando como herdeira à neta, Giovanna, depois Giovanna I. Casada com um primo, Andrea de Hungria, não lhe mostra grandes afetos, e seus muitos amantes se sucedem e são de conhecimento de todo mundo na corte. O ponto culminante da crise é o assassínio de Andrea, em 18 de setembro de 1345; o príncipe é estrangulado nos próprios apartamentos reais. Ao que parece, Niccolò Acciaioli não era estranho à conjura que matou o consorte — no caso, o sem sorte — mas não há evidências a respeito, fora evidências circunstanciais. Mas o envolvimento da rainha Giovanna é notório, e o escândalo cresce a ponto de o papa excomungá-la. (Aqui o que vejo é a morte de Davide Rizzio, o pagem favorito de Mary Stuart, assassinado pelos nobres escoceses quando se agarrava às saias da rainha. Há um quadro do século XIX, não lá grande coisa, quase imagem de Tesouro da Juventude, representando esse outro assassínio. A morte de Andrea de Hungria deve ter sido semelhante.)

Logo em seguida, Niccolò Acciaioli se mete noutra conjura, dessa vez para forçar a rainha a se casar com um personagem politicamente conveniente. O marido que Niccolò escolheu foi Luigi di Taranto, filho de sua amante Caterina di Valois-Courtenay, seu pupilo. Niccolò Acciaioli agarrou Luigi, jogou-o no quarto da rainha, trancou a porta e gritou, scandalo! Cena de ópera bufa. Para salvar a honra de Giovanna, imaginem só, só o casamento, que se deu em 20 de agosto de 1347. Neste momento, Niccolò Acciaioli torna-se senhor de fato do reino de Nápoles — e a memória desta sua singularíssima posição é o que me passou meu pai naquela tarde em Friburgo, quando começou a me contar histórias da família.

Reação do outro pretendente, ao trono de Nápoles e à mão (e leito) de Giovanna, Ludovico da Hungria: levanta-se contra Niccolò, que foge levando consigo o casal real, Luigi e Giovanna. Giovanna abriga-se na Provença com mais um amante, um Caracciolo, enquanto que Luigi e Niccolò dirigem-se à Toscana, ao castelo dos Acciaiolis, Montegufoni. Lá chegados, recebem dois embaixadores da república de Florença, que os dizem personae non gratae em Florença. Niccolò chama então seu parente Angiolo Acciaioli, o terrível bispo de Florença que fez depor Gauthier de Brienne, podestà da república — adiante conto sobre ele — e com o bispo e Luigi di Taranto, embarca para Avignon, onde já estava a rainha Giovanna. (A cena em Montegufoni dá para filmar, na própria locação dos fatos. Com os embaixadores se curvando diante do mercador compatriota que se tornou em grão-senhor feudal. Deve-se apenas tomar cuidado para apagar das imagens filmadas a torre que existe hoje no castelo, construída em fins do século XIV em imitação à torre do Palazzo Vecchio em Florença.)

O dinheiro do mercador compra exércitos: Niccolò Acciaioli assolda galeras genovesas, que transportam de volta o príncipe e a rainha a Nápoles, onde desembarcam e reconquistam o reino em 31 de agosto de 1348. Logo em seguida, Niccolò é feito grão-senescal do reino, e declarado primeiro dos funcionários do estado, com poderes de um primeiro-ministro e lorde-protetor de Nápoles. É também feito Conde Palatino de Melfi (Amalfi), com o privilégio de poder transmitir aos herdeiros terras, bens, e o título referido. Sofre um atentado (aqui, um lugar comum visual: Niccolò andando numa ruela estreita, de noite, e de repente alguém pula de um beco e o apunhala). Pouco depois, perde o filho primogênito e herdeiro, Lorenzo Acciaioli, que será enterrado na Certosa de Florença, aos pés da sepultura do pai.

Voltando a Florença para receber o imperador Carlos IV — que o convida a segui-lo na Alemanha, onde lhe daria novas honras, o que Niccolò Acciaioli recusa porque já era senhor de fato de Nápoles — choca os concidadãos seus, florentinos, ao andar pelas estradas com um séquito de cento e cinquenta homens armados, e a celebrar contínuos banquetes luxuosíssimos no palazzo familiar, no Borgo de’ S.S. Apostoli. É feito Conde de Malta e de Gozzo.

(A cena dos banquetes, bom, me lembra de novo os bizantinos tarados de Brancaleone. Lembro também que, há quinze anos, em Florença mesma, me levaram a jantar num restaurante onde se comia como no século XIV. Ou tinha bebido muito, ou não vi lá grande diferença na comida, deliciosa de qualquer jeito.)

Em 1356 acolhe em Nápoles dois primos: Neri, o futuro Duque de Atenas, e Angelo di Alamanno, e abriga, no castelo da irmã Lapa, odiada por Boccaccio, que a chamava Lupisca, a Loba, o casal real de Nápoles. Realiza uma reconciliação e trégua no reino, entre as facções litigiosas da família real. Estamos chegando ao clímax da vida de Niccolò Acciaioli.

Em 1359 o papa decreta sobre Nápoles um interdito — proibição de qualquer atividade religiosa, batismos, casamentos, sepultamentos, missas, e qualquer sacramento — porque não lhe foram pagos certos tributos religiosos. Niccolò Acciaioli é então enviado ao papa, para negociar um acordo. Age com tal habilidade que não só o interdito é levantado, como também é nomeado senador de Roma, reitor (administrador) de Bologna e da Romagna para os bens eclesiásticos, e Conde de Campagna.

E, maior de todas as honras, no dia de Pentecostes de 1360 recebe a Rosa de Ouro, sendo como já disse o único indivíduo não pertencente a uma família soberana a receber esta máxima homenagem de um pontífice. (Tento visualizar esta cena, mas sem grande sucesso fora dos lugares comuns mais óbvios: uma figura de branco, franzina, o papa, entregando a Niccolò a rosa de ouro, na verdade três rosas com suas hastes, de onde saem algumas folhas, todas de ouro, colocadas numa jarra também de ouro. Niccolò pode aparecer aqui como no retrato que existe na Certosa florentina, numa armadura quase negra, sem elmo, os cabelos ainda escuros, calvície avançando da fronte. O cenário é Avignon, o Palácio dos Papas, uma fortaleza medieval, sóbria. Não consigo imaginar mais que isso.)

Já doente, em 1364, Niccolò Acciaioli precisa escrever uma memória autobiográfica, enviada ao papa para justificar-se face a acusações de seus inimigos. Poderoso sempre na política, mas enfraquecido pela doença, cuida de gerir seu patrimônio e de distribui-lo pelos filhos e pelo parente que adotara, Neri di Jacopo Acciaioli, que mandara para a Grécia, onde fundará um principado sob duques soberanos da casa dos Acciaiolis, antes ainda que chegue ao fim o século XIV.

(Não sei como seria a cena final, Niccolò Acciaioli morrendo. Me esforço para ver, dentro de minha cabeça, algo grandioso, mas só me lembro do bico-de-pena de Gustave Doré mostrando a morte de D. Quijote. Será que isso significa estar meu inconsciente sugerindo um paralelo entre D. Quijote e Niccolò Acciaioli? Como poderia ser este paralelo? D. Quijote, fidalgo de nobreza antiga mas arruinado, meio louco, o último dos cavaleiros andantes. Niccolò Acciaioli, mercador florentino que de repente, em Nápoles, se transforma num condottiero feroz e num político habilíssimo, maquiavélico avant la lettre. Será que, na essência, seriam a mesma coisa, o mesmo arquétipo? Duas faces de Jano para a mesma criatura?)


Uma família de intelectuais?

Niccolò Acciaioli é lembrado como um grande estadista, talvez o maior estadista, na Itália que ainda não existia, do século XIV. Mas sua grande obra, que permanece até hoje, foi a Certosa de Florença, em Val d’Ema, projeto que o ocupava desde 1338. Na Certosa, concebeu também um grande prédio anexo, o Palazzo degli Studj, que deveria abrigar estudantes e scholars, uma espécie de centro universitário, já que em Florença não existia, então, universidade.

Era com certeza o sonho maior de Niccolò Acciaioli. Numa carta ao parente Jacopo di Donato Acciaioli, em Florença, que chama fratello, irmão, diz o grão-senescal:

Jacopo, io ti dico che tutte le mie consolationi si riposano a lo nostro santo munisterio. Tutti li rifugii de le tribulationi che per li inopinati casi occurrenti mi potessino occurrere, là si reducono. Nulla casa possedo che mi pare che mia sia, se non quello munisterio. A tutte hore che io penso a lo dicto munisterio, sono da me fugate ire e malinconie, e, per certo, se io avessi denari, io lo farei lo plu notabile loco a tutta Italia.

Jacopo, digo-te que todas as minhas consolações repousam no nosso santo mosteiro [a Certosa]. Todos os refúgios das tribulações que pelos casos inopinados possam ocorrer, lá se reduzem. Não possuo nenhuma casa que pareça ser minha, salvo aquele mosteiro. A toda hora que penso no dito mosteiro, fogem de mim iras e melancolias, e, por certo, se tiver dinheiro, vou fazê-lo o mais notável lugar de toda a Itália.

Tinha sensibilidade intelectual, e refinamento. Quando morre o humanista (ou pré-humanista) Zanobi da Strada, Niccolò Acciaioli escreve a seu familiar e amigo, o tabelião Landolfo, chamado Gazza, ou Cajazza:

…dipoi che’l mondo è robato di tale e tanto homo chui simile non surse ne fu audito o veduto forse mille anni sono passati, e un altro solo, messere Francesco Petrarcho poeta, escietuato.

(Após o mundo ser roubado de um tal homem, tal que um similar não surge, ou do qual não se ouve, ou vê, mesmo se passarem mil anos, excetuado um só outro, messer Francesco Petrarca.)

ma l’amicizia dell’ottimo Zanobio et mia, celebrata per ispazio di tanto tempo, è stata per tutti li suoi e miei spiriti letifichantemente exprimentata. E tu di ciò sarai grande per te; nè chonfessarei io che Ulises e Diomedes, Achilles et Patrocholus, Damon et Pitias, Nisus et Eurialus, Scipio et Lelius, Chastor et Polus, Hercules et Teseus, Eneas et Achates, o qualunque altri paria di amici furono jamai in questo mondo chontracte et observate, …


(Mas a amizade entre o ótimo Zenóbio e eu, celebrada durante tanto tempo, foi, para o seu e para o meu espírito, alegremente experimentada. E tu dizes o que será grande para ti: ou não confessarei que Ulisses e Diomedes, Aquiles e Pátroclo, Damon e Pitias, Niso e Euríalo, Cipião e Lélio, Castor e Pólux, Hércules e Teseu, Enéias e Achates, ou quaisquer outros pares de amigos, foram, neste mundo, contraídas e observadas…) Note-se que esta carta foi escrita por um comerciante, mercador rico, tornado em grande condottiero — e também note-se a referência à amizade íntima entre Aquiles e Pátroclo, cuja natureza era bem conhecida, mesmo no princípio do Renascimento.

Peculiar família, esta, na qual existem intelectuais e patronos das artes e letras desde o século XIII, quando encontramos o juiz e doutor em cânones messer Leone Acciaioli. Houve outros: além de Niccolò, Donato Acciaioli, amigo de Lorenzo il Magnifico, um século depois de Niccolò; Neri e Antonio Acciaioli, Duques de Atenas, que para seu feudo atraem artistas e humanistas; fra Zanobi Acciaioli, bibliotecário no Vaticano.


Andreina e Lapa, irmãs do grão-senescal Niccolò.

Niccolò Acciaioli teve duas irmãs, de vida quase tão agitada quanto a dele próprio. Andreina Acciaioli, mulher belísima segundo os testemunhos contemporâneos, casa-se com Carlo d’Artus, Conde de Monte Odorisio, que dizem ter sido bastardo do rei Roberto de Nápoles. Ludovico de Hungria, na fúria punitiva contra os assassinos de Andrea, primeiro marido de Giovanna I, faz decapitar o Duque de Durazzo, e logo em seguida, em 1345, Carlo d’Artus. Andreina, viúva, casa-se com Bartolommeo di Capua, Conde de Altavilla, e seus descendentes se espalham na nobreza de Nápoles, até hoje.

Boccaccio dedicou, a Bartolommeo di Capua e à sua mulher Andreina Acciaioli, seu livro De Claris Mulieribus, Sobre as Mulheres Ilustres.

A segunda irmã do grão-senescal foi Lapa Acciaioli, mulher de messer Manente Buondelmonte. Odiada por Boccaccio, que a chamava Lupisca, a loba, teve apesar de tudo uma vida apagada. O casal teve um filho, Esaù Buondelmonte, e uma filha, Maddalena Buondelmonte, que se casou com Leonardo I Tocco, senhor de Leucade e de Zante, falecido em 1381 — a mulher exerceu a regência do senhorio até 1388, em nome dos filhos menores. Um deles, Leonardo II Tocco, nascido c. 1375 e falecido em 1418 ou logo depois, Conde Palatino de Zante, governa Corinto em nome do parente Acciaioli, Duque de Atenas, de 1407 a 1408. Sua filha Creusa Tocco casa-se com Centurione II Zaccaria, genovês, Príncipe de Acaia; dela se sabe que, em 1432, seu genro Teodoro Paleólogo, désposta da Moréia, aprisiona-a, não se sabe o motivo. Teodoro Paleólogo era casado com Caterina Zaccaria, morta em 1462, e era irmão de Constantino XI, último imperador de Bizâncio.

Por que descrever esta linhagem? Porque Sofia, ou Zoè, Paleologina, filha de Caterina Zaccaria e de Teodoro Paleólogo, casou-se com Ivan III, grão-príncipe de Moscou, pais de Vassili III e avós do tsar Ivan o Terrível.

Isto é, Ivan o Terrível era um sobrinho distante de Niccolò Acciaioli.


O bispo de Florença, Angiolo di Monte Acciaioli.

Era filho de Monte Acciaioli, e neto de Mannino Acciaioli, e nasceu em Florença em 1298 — morrerá em Nápoles em 4 de outubro de 1357. Bispo aos trinta anos, recebeu a sé de Áquila como sua primeira diocese. Em 1341 morre o bispo de Florença, e o papa Clemente VI colocou a messer Angiolo Acciaioli na diocese florentina em 1342 contra a vontade das congregações locais, o que resultou em não poucas tensões.

Homem enérgico, messer Angiolo mete-se logo em dois episódios tumultuados da história florentina. O primeiro deu-se logo após sua ascensão à sé toscana, quando começa a pregar, entusiasmado, usando de sua autoridade pastoral, em favor de que se desse o senhorio de Florença ao Conde Gauthier de Brienne, Duque de Atenas. Assumindo o cargo de podestà florentino, Gauthier de Brienne mostra-se um celerado cercado por celerados. Rapidamente se esvai o apoio de que gozava, e em 1343 surgem três conjuras independentes para depô-lo, uma delas sob a chefia do próprio bispo que pregara antes em favor de sua tirania. Advertido das conjuras, Gauthier de Brienne tenta reagir, mas o povo florentino sai às ruas e força a expulsão do podestà, ao mesmo tempo estraçalhando de maneira crudelíssima dois dos principais sicários do Duque de Atenas — que, este, foge de Florença sem maiores compensações. Foi isso em 3 de agosto de 1343. Nesta crise, messer Angiolo Acciaioli, o bispo, é, brevemente e de fato a autoridade máxima florentina, conduzindo-a habilmente, melhor, maquiavelicamente avant la lettre, que o maquiavelismo parece que estava no fundo do caráter florentino daqueles tempos.

Pois o bispo Angiolo tenta, no meio da crise, abrir de novo espaço aos magnati, os antigos nobres, na administração das coisas públicas em Florença, o que lhes havia sido vedado desde as reformas do fim do século XIII. A reação dos grandes mercadores, o popolo grasso, a alta burguesia, o grupo que controlava desde a crise de Montaperrti, em 1260, o governo da cidade, foi enérgica, e o bispo teve que recuar em suas manobras solertes.

Logo em seguida dá-se a crise das casas bancárias Bardi e Peruzzi. Na verdade, tal crise começou em 1339, quando Eduardo III da Inglaterra suspende os pagamentos a seus credores, os banqueiros que lhe financiavam a aventura da guerra dos cem anos. Embora o decreto de suspensão de pagamentos excluísse expressamente os florentinos, estes acabam não sendo pagos também, e depois de uma agonia demorada, em 1345, ao fim do ano, abre falência a casa bancária dos Bardi, e logo em seguida os Peruzzi, Acciaioli, Buonaccorsi, Cocchi, Antellesi, Corsini, e outras grandes companhias.

(Um episódio quase sobrenatural havia marcado o ano para os florentinos: um pouco antes dessa falência em massa, certo dia um lobo magro e esfomeado entra na cidade e a percorre toda, antes de ser morto a tiros. Na mesma hora, do portal do palácio do podestà, cai um escudo de gesso onde estava pintado a flor-de-liz que representava a cidade, fracionando-se em mil pedaços. Os dois incidentes como vistos como o anúncio, o augúrio de tempos de carestia e escassez para Florença.)

Voltando à falência das casas bancárias: o bispo messer Angiolo Acciaioli movimenta-se para resguardar os interesses de sua família e dos seus. Com sua ajuda, e a do parente Niccolò Acciaioli, o grão-senescal, vende-se o palácio familiar, no Borgo de’ S.S. Apostoli, a Mamente Buondelmonte, cunhado de Niccolò, numa transação que provavelmente não era mais que um acerto dentro do clã; e quando o Cardeal Pedro de Toledo usa dos poderes do inquisidor florentino para receber 12 mil florins de ouro que lhe eram devidos, o bispo Acciaioli apela diretamente à corte papal agindo como advogado dos seus, com o que o cardeal só recebe 5 mil florins, e o inquisidor é punido.

Angiolo Acciaioli deixa a sé florentina em 1355, e, com a ajuda dos soberanos de Nápoles, troca-a pela de Montecassino, onde é feito arcebispo. Morre pouco depois em Nápoles, em 1357.


Os Duques de Atenas.

Tem uma historinha para abrir o apetite. Chico Accioli, meu tio-avô, Altamir do Valle e Accioli de Vasconcellos, era oficial de marinha, e como imediato participou da tripulacão do cruzador Minas Gerais, que trouxe o rei da Bélgica ao Brasil, em 1920. O navio parou na Inglaterra, em Portsmouth, e Chico e outros membros da tripulação aproveitaram em foram até Londres. Em Londres, num certo momento, o concierge do hotel diz a Chico que uma sua parenta dos Acciaiolis da ilha da Madeira gostaria de lhe pedir uma audiência.

Audiência? Chico estranha, audiência? mas — vamos em frente, decide. Marca a hora, e lá vem a senhora, de cuja aparência nunca me deram notícia, mas que imagino gorduchinha, rechonchuda, grisalha, de chapéu de florzinhas, quase uma Miss Marple, a não ser pela raposa prateada que a vejo sempre usando nos ombros. A senhora começa a falar cheia de dedos, discute a história dos Duques de Atenas (Chico sabia alguma coisa, mas não dava lá muita bola), fala nos Acciaiolis de Vasconcellos, o ramo original da família na Madeira e no Brasil — e ataca, enfim, poderia Vossa Excelência renunciar aos direitos de seu ramo a tal título, em favor do meu ramo?

Resposta de Chico, no ato: renunciar ao ducado? Não! Dou-lho de presente!

Noto que o Ducado de Atenas deixou de pertencer aos Acciaiolis em 1462 ou 1463, quando janízaros matam o último duque. Se o título não está caduco, não sei o que é caducidade. Acrescento uma observação, que descobri na autobiografia de Sir Osbert Sitwell, Great Morning, nalgum canto. O pai de Sir Osbert, Sir George Sitwell, comprou em 1908 o castelo de Montegufoni, descrito por Osbert como a trumpeting herd of white elefants, uma manada uivante de elefantes brancos.

Se o castelo, só, era uma manada ululante de elefantes brancos, o ducado de Atenas foi uma manada de brontossauros brancos para os Acciaiolis. Porque, em Florença, ninguém queria saber, na família, do título ducal. Houve dois duques importantes: Neri Acciaioli, o primeiro Duque de Atenas, que morreu em 1394, e seu filho Antonio Acciaioli, falecido em 1435, o segundo duque. Não tendo herdeiros diretos o segundo dos duques, valeu-se de uma disposição das patentes e tratados com Nápoles que reconheciam em Neri o senhor do ducado; este passaria aos descendentes de Donato, irmão de Neri. Que o repassa a um filho bastardo, Franco ou Francesco Acciaioli, porque nenhum dos seus filhos legítimos queria saber de um principado num local tão instável.

Agora, os Duques de Atenas. Sua história foi uma reprise, em menor escala, do que havia sido a biografia do grão-senescal Niccolò. Neri Acciaioli, filho de Jacopo Acciaioli e de Bartolommea di Bindaccio de’ Ricasoli, nasce em Florença entre 1335 e 1340. Ainda adolescente, vai para Nápoles, onde seu parente o grão-senescal adota-o formalmente como filho e o envia à Grécia para gerir os feudos que ele, Niccolò, possuía na Acaia e no Peloponeso. Neri destaca-se, neste período, na corte de Marie de Bourbon, princesa de Taranto e (como Caterina di Valois-Courtenay) imperatriz titular de Constantinopla; pode ter sido amante da Bourbon, que era bela e jovem.

(Há um retrato de Neri Acciaioli nos Uffizi, reproduzido nas tábuas genealógicas de Litta sobre essa família: mostra um homem de rosto magro, algo semelhante ao do senescal Niccolò, com uma barba pontuda, tudo enquadrado por um elmo com a viseira levantada.)

Mas tudo começa bem antes, possivelmente pela segunda metade do século XIII. Messer Leone degli Acciaioli funda o Banco Acciaioli, que se firma após 1282, quando os guelfos assumem o controle político em Florença. Os interesses de sua compagna chegam à Tunísia e à Grécia. Sucede a messer Leone no comando da empresa familiar, Dardanno — nome do fundador de Tróia, assinale-se — filho primogênito de Lotteringo ou Tingo Acciaioli, este, noto, sobrinho de messer Leone. Provavelmente desde essa época, ao fim do século XIII, possuem os Acciaiolis feudos na Grécia. Deduzimos isso de uma carta de cessão de bens feudais feita pelo Banco Acciaioli a Niccolò Acciaioli, cessão autorizada pela suzerana daqueles feudos, Caterina di Valois-Courtenay:

…certa bona feudalia posita in casali de La Lichina et de La Mandria, de principatu Achaye…

Bens feudais nos vilarejos de La Lichina e de La Mandria, no principado de Acaia. Nesse mesmo documento lemos quem eram os sócios da Compagna di Ser Leone degli Acciaioli:

…quod nobiles viri, Dardanus olim Tingi de Acciaiolis, dominus Bidignanus olim Manecti de Marocellis, Acciaiolus olim domini Niccole de Acciaiolis, Johannes olim Bonacorsis, Banus olim Bandini et Laurencius Johannis Bonacorsi, cives et mercatores florentini, socii de societate Aczarellorum de Florentia…

A saber: os nobres senhores Dardanno filho do falecido Tingo degli Acciaioli, messer Bidignanus filho do falecido Manecto de Maroncelli, Acciaiolo filho do falecido messer Niccolò degli Acciaioli, Giovanni filho de Buonaccorso, Banno filho de Bandino, e Lorenzo, filho de Giovanni Buonaccorsi, cidadãos e mercadores de Florença, sócios da sociedade dos Acciaiolis de Florença. (Note-se que o nome familiar vem escrito indiferentemente Acciaioli e Acciaroli.)

Nessa mesma época, o grão-senescal Niccolò Acciaioli torna-se senhor de Corinto, através de uma cessão, em 1336, feita pela mesma Caterina di Valois. A senhoria de Corinto passará a seu filho Angiolo Acciaioli, que a cede, em pagamento de um empréstimo a seu primo e irmão adotivo, Ranieri ou Neri di Jacopo Acciaioli.

Nesse tempo, o ducado de Atenas era governado pelos catalães; Neri, em campanha na Grécia, já senhor de Corinto, cai prisioneiro daqueles, e seu irmão Donato gestiona junto aos venezianos para que pressione os catalães a liberarem o Acciaioli. Libertado, Neri toma Mégara, e de lá apropria-se de Atenas, que controla desde 1386 ou 1387. É um governante esclarecido: permite à comunidade greco-ortodoxa que pratique livremente seus cultos, sob um arcebispo que faz procurar e ao qual dá residência na cidade baixa de Atenas. Constroi para si um palácio no Partenon, e também constroi muitos novos edifícios na cidade. Atrai comerciantes toscanos, e também intelectuais, praxe que será seguida por seu filho e sucessor — contra as disposições de seu testamento — Antonio Acciaioli, segundo Duque de Atenas dessa gente.

É formalmente reconhecido pelo rei Ladislau de Nápoles como Duque de Atenas, Tebas, Corinto, Mégara e Platéia, em 1392, com diretos hereditários sobre o feudo, que deve passar às mãos dos herdeiros de seu irmão Donato. Para sua confirmação como duque, Ladislau envia a Atenas o próprio irmão de Neri, o Cardeal Angiolo Acciaioli, arcebispo de Florença, como legado.

Neri Acciaioli morre em seu ducado em setembro de 1394; casara-se, mas não se sabe ao certo quem foi sua mulher, cujo prenome conhecemos de documentos, Agnese. Litta fala que foi uma filha de Filippo Doria, almirante que disputou várias batalhas em Chipre, opinião seguida por Buchon, mas não se tem certeza. De Maria Rendi, filha bastarda de Demetrio Rendi, de Mégara, depois notário em Atenas, que a tinha, a esta Maria, por sua escrava, teve um filho natural, Antonio, que vai sucedê-lo. Teve duas filhas legítimas, mulheres belíssimas segundo o testemunho dos tempos, Francesca, casada com Carlo di Tocco, senhor de Arta e Duque de Leucate, e Bartolommea, casada com Teodoro Paleologo, irmão de Constantino, o imperador de Bizâncio, e désposta da Romênia. Ambas tiveram descendência, em linhas femininas.

Agora vamos pensar um pouco: Neri Acciaioli reina sobre o ducado de Atenas durante cerca de dez anos. Quem o sagra, sanciona como duque, em nome de Ladislau de Nápoles, é seu irmão, o Cardeal Angiolo Acciaioli, um quase papa, pois só não foi eleito sucessor de Urbano VI, apesar de ter a maioria dos votos no conclave de 1389, devido à oposição dos Orsinis. Pois Neri concede a seus súditos uma inédita liberdade de culto. Na verdade, temos aqui o espírito da renascença, ainda em fins do século XIV: a liberdade religiosa, o cultivo à inteligência.

Antonio, bastardo dos Acciaiolis, filho de Neri e de Maria Rendi, aproveitando um vácuo de poder, assenhora-se do ducado e se instala na Acrópole, isso pouco depois da morte do pai. Mas vai lutar e negociar durante mais de dez anos, com a ajuda do cardeal seu tio e de outro tio, Donato, primeiro para conquistar o ducado, e depois para se ver reconhecido como Duque de Atenas, o que consegue num tratado com Veneza em 31 de março de 1405. Viverá até maio ou junho de 1435, sempre soberano do ducado. Governou durante 32 anos a terra de Setines, que é o nome dado a Atenas nos séculos XIV e XV, equilibrando-se pacificamente, sem conflitos, entre os turcos e as potências ocidentais. Para lá atraiu comerciantes, fazendo Atenas uma terra próspera, e intelectuais e artistas.

Casou-se com Maria Melissena-Comnéna, de uma família aliada aos Comnénoi, imperadores de Bizâncio, e dela adotou o nome, dizendo-se Antonio Acciaioli Comnéno. De modo geral, adotou a mesma política esclarecida de seu pai. Não tendo filhos, buscou como disse a sua sucessão em Florença, entre os descendentes de seu tio Donato Acciaioli.

Chamou para Atenas um filho natural daquele tio, Franco ou Francesco Acciaioli, chegado em Atenas em 1412, e casado com Margherita Bardi Malpighi. Franco morreu em Atenas ainda jovem, em 1419, e dois de seus filhos permanecem do ducado, Neri e Antonio, para sucederem ao duque. (Dentre os filhos de Franco Acciaioli e Margherita Malpighi, está a filha Lucia Acciaioli, casada com Angiolo Amadori. Destes foi filho Niccolò Amadori, pai de Benozzo Amadori, que se fixa na ilha da Madeira em fins do século XV, e por este avô de Ginevra Amadori, mãe de Simone Acciaioli, ancestral dos Acciaiolis em Portugal e no Brasil — isto se dermos crédito à carta de brasão passada a Benozzo Amadori, em 25 de abril de 1514, e se identificarmos o “Amonto” Amador desta carta d’armas a Agnolo, ou Angiolo Amadori.)

A Antonio Acciaioli sucedem quatro duques sem maior expressão, no ducado-elefante-branco. Neri II, Duque de Atenas, Senhor de Mégara, etc., reina de 1435 a 1439, quando seu irmão Antonio II o depõe. Este controla o ducado até 1441, quando morre. Volta ao trono Neri II, que reina até 1451. Seu filho Francesco I Acciaioli, Duque de Atenas depois da morte do pai, é expulso pelo primo homônimo em 1455. Morre em Constantinopla depois de 1460, pelo que se sabe convertido ao islã.

O último Duque de Atenas nos Acciaiolis é Franco ou Francesco II Acciaioli, que é criado junto ao jovem Maomé II — Chalcondyla diz que Maomé fê-lo seu amante, seu catamito. Voltando a Atenas, este Franco expulsa o primo de mesmo nome do trono em 1455, faz com que assassinem a mãe daquele, que exercia a regência sobre o ducado, e assume o trono. Dele é por sua vez expulso em 1460, e em 1463 é assassinado por janízaros depois de um jantar, seguindo ordens diretas de Maomé II. Seus filhos Gabriele, Matteo e Jacopo são incorporados aos janízaros, e desaparecem da memória.

E assim termina a soberania dos Acciaiolis sobre o ducado de Atenas. Durou setenta anos; foi um governo próspero ao início, e depois se desfez, com o avanço dos turcos e com a instabilidade de herdeiros que não souberam o óbvio: deveriam ao menos se entender, para que a dinastia mantivesse o controle do ducado. Viraram nota ao pé da página em manual de história da renascença.

Nota tipo conclusão: sempre tive curiosidade em ler a patente que faz Duque de Atenas a Neri Acciaioli. Foi publicada por Buchon, p. 224. Não vou transcrever tudo porque é um blá-blá-blá burocrático atroz. Mas as partes mais interessantes são as seguintes:

Ladislaus, Dei gracia Hungarie, Jerusalem, Sicilie, Dalmatie, Croacie, Rascie, Servie, Lodomerie, Comanie Bulgariaque rex, …



… eidem Nerio et suis heredibus ex suo corpore legitime descendentibus, natis jam et in antea nascituris, imperpetuum civitatem et ducatum predictum Athenarum, … , cum terris, castris, fortelliciis, casalibus, viliis, hominibus, vassallis, villanis, …



… constituimus et ordinamus, ipsumque Nerium et ejus posteros, honore, titulo et dignitate dicti ducatus Athenarum decoramus et etiam insignimus.



Nos Angelus, cardinalis Florentinus legatus et balius, consentimus.

Tradução: Ladislau, pela graça de Deus rei da Hungria, de Jerusalém, Sicília, Dalmácia, Croácia, Ráscia (?), Lodoméria (?), Cumania e da Bulgária…

(Meu comentário: de tudo isso ele era rei só da Sicilia, reino que incluía a parte sul da Itália e a ilha homônima.)

Continuo: ao mesmo Neri e a seus herdeiros de seu próprio corpo, legitimamente descendendo, já nascidos e por nascer, em perpétuo [damos] a cidade e o ducado predito de Atenas, …, com as terras, castelos, fortalezas, casai, vilas, homens, vassalos, vilãos…

Ainda: contituimos e ordenamos ao mesmo Neri e seus sucessores, agraciamos e também damos a insígnia e a honra, título e dignidade do dito ducado de Atenas…

Nós, Angiolo, cardeal de Florença, legado e bailio, consentimus.

(Note-se que Angiolo Acciaioli, que aqui dá seu consentimento à carta patente de Ladislau, era irmão de Neri Acciaioli. Ou seja, um Acciaioli faz duque ao outro.)



Angiolo Acciaioli, Cardeal de Florença; e dois humanistas.

Angiolo Acciaioli nasceu em 1349, também filho de Jacopo Acciaioli e de Bartolommea Ricasoli. Bispo de Rapolla em 1376, assume a sé de Florença em 1383. Em 1384, com apenas trinta e cinco anos, é feito cardeal, do título de S. Lorenzo in Damaso, por Urbano VI.

(Lembro que uma vez Ana Maria, minha prima, me levou e a uma amiga, para jantar fora, numa trattoria que ficava ao lado da igreja de S. Lorenzo in Damaso. Certamente não a igreja original, do século XIV, mas a de agora, uma igreja barroca, sem maior interesse, mole cinzenta e indistinta que pesava sobre nós enquanto enfrentávamos o tagliatelli al sugo com algum acompanhamento sem maiores notabilidades e — disso me lembro bem — bebíamos o vinho da casa, um bom rosso. Dizíamos muita besteira; num determinado momento quis lembrar que aquela era a igreja do título do primeiro dos cardeais Acciaiolis, seis séculos atrás da gente, e Ana Maria, com toda a delicadeza, me interrompeu, não, agora não, Francisco Antonio, não conta isso não. E voltamos às besteiras e à comida cujo gosto, hoje, esqueci.)

No conclave de 1389 chegou, em dado momento, a ter a maioria dos votos, mas não atingiu o quórum qualificado de dois terços, devido à oposição dos Orsinis. Foi quem coroou em Gaeta, em 11 de maio de 1390, a Ladislau de Nápoles. Foi legado papal na Hungria, Dalmácia, Croácia, Bósnia, Valáquia e Bulgária. Morreu em 12 de junho de 1409, e está enterrado na Certosa fundada pelo grão-senescal Niccolò Acciaioli.

Cito ainda, rapidamente, Donato Acciaioli, que nasceu em Florença em 1428 e morreu em Milão em 28 de agosto de 1478, humanista, tradutor de Plutarco, amigo de Lorenzo il Magnifico, a quem designou como tutor de seus filhos. Casou-se com Maria di Piero d’Andrea de’ Pazzi, conhecida em família como Marietta. Donato era filho de Neri Acciaioli, que morreu jovem, com apenas vinte e oito anos, e de Lena, filha do grande Palla Strozzi. Era neto de Donato Acciaioli, governador de Corinto ao tempo do irmão Neri I, Duque de Atenas, e de sua segunda mulher Tecca di Gaggio de’ Giacomini di Poggio Tebalducci.

Último da linha familiar que descendia de Mannino Acciaioli foi frei Zanobi Acciaioli, nascido em Florença em 1461 e falecido em Roma em 1519. Foi prefeito da Biblioteca do Vaticano, e são-lhe atribuídas diversas obras eruditas.


Jacopo d’Angelo da Scarperia, e Laudomia Acciaioli in Medici.

O Cardeal Angiolo Acciaioli foi mais condottiero que religioso, e pode ter sido seu filho ilegítimo o humanista Jacopo d'Angelo da Scarperia, que é algumas vezes dado como um bastardo da família Acciaioli. Scarperia escreveu sobre filosofia e sobre física: neste caso, fez um tratado sobre um grande cometa visto no início do século XV.

E sobrinha-neta do cardeal foi Laudomia Acciaioli, mulher de Pierfrancesco de’ Medici, bisavó do grão-duque da Toscana Cosimo I de' Medici, e ancestral de todos os Bourbons que descendem de Marie de Médicis e de Henrique IV de França. Ou seja, a imensa maioria dos Bourbons de hoje. Isso pega casas reais ainda no trono, como os reis de Espanha e da Bélgica; através de linhas femininas, os reis da Inglaterra — e paro aqui, pois seria enumeração cansativa e inútil.

Laudomia Acciaioli in Medici e seu filho Lorenzo foram protetores de Botticelli, e para este Lorenzo di Pierfrancesco de' Medici, Botticelli pintou a Celebração da Primavera; Laudomia era filha de Iacopo Acciaioli e de sua mulher Costanza de’ Bardi, e neta de Donato Acciaioli, e de sua primeira mulher Onesta di Carlo Strozzi.


O mistério da cripta.

Desço a escada escura, quase tateando com os pés, porque mal vejo o caminho. Um frade cartuxo está a meu lado, e procura num canto qualquer da parede um interruptor de luz. Pronto, achou. Clic.

A luz elétrica mata e banaliza. Ilumina-se a cripta da Certosa de Florença, o mosteiro fundado pelo senescal Niccolò Acciaioli. Vejo, súbito, tudo — mas é como se todo o gosto, todo o cheiro, toda a emoção do lugar desaparecesse. Fica tudo chão, plano, como se as cores da realidade se esmaecessem. O sentido de algum lugar é dado pela emoção que vivemos naquele lugar, e essa luz elétrica, amarelo incandescente, que não deixa nenhum buraquinho sombrio aqui na cripta dos Acciaiolis, mata as emoções que poderia ainda capturar aqui. Como comida de cara boa mas sem gosto, ou com gosto de palha, gosto de papel.

Num canto, lá no fundo da cripta, imenso, perdendo-se nas ogivas do teto, numa parede lateral, está o monumento fúnebre de Niccolò Acciaioli. Mesmo me levantando na ponta dos pés, não consigo ver direito seu rosto, na estátua jacente, em que aparece completamente armado, mas sem elmo. Aos pés do monumento, os túmulos de seu pai, messer Acciaiolo Acciaioli, de seu filho Lorenzo, de sua irmã Lapa Acciaioli in Buondelmonte, a amiga de S. Brígida, a Lupisca, segundo Boccaccio.

Estão todos numa capela lateral, a Capela de Tobias. Abandono-a. Debaixo da abóbada principal está a sepultura do cardeal Angiolo, e de outros membros da família, inclusive a do humanista Donato Acciaioli, o amigo e colaborador de Lorenzo il Magnifico.

Tudo debaixo da luz elétrica acachapante, banalizadora. Deviam chamar um cenógrafo hollywoodiano para iluminar aqui a cripta, como fizeram no Museo Egizio de Turim. Restabeleceríamos a verdade da coisas. A emoção voltaria aqui à cripta dos Acciaiolis na Certosa.

Quando subo a escada de volta à superfície, penso: com uma iluminação bem pensada, este é um belo lugar para fazer a cena final de meu livro ainda não escrito de mistério e fantasia. Essa capela dos Acciaiolis nada deve, em clima fantástico, à igrejinha de Rosslyn.

(Texto tirado do livro Italianos no Brasil Colonial, ainda inédito; na ilustração, o sepulcro de Nicola Acciaioli, da oficina de Andrea Orcagna, na Capela de Tobias, na Certosa de Florença.)

quarta-feira, 18 de junho de 2008

1968, XVII - Noblesse oblige

— General, sente-se, por favor. Vovô já vem receber o senhor.

O general era Taurino de Resende, presidente da CGI, Comissão Geral de Investigações, o malleus subversivorum, martelo dos subversivos. Estávamos em maio de 1964. Taurino de Resende era um caboclão alto, de cara redonda, bem moreno, pele bronze. No jeito lembrava meu tio-avô Luiz Doria, um sergipano alto com um porte imponente como o do general Taurino, este, pernambucano.

Estávamos na saleta da casa da vovó, que era como eu chamava a casa de meus avós maternos (era da vovó, não de vovô; senhor da casa era a senhora dona, Dona Hermínia, minha avó). A casa, um cubo de três andares em estilo normando — rheinische Fachwerk — no centro de um jardim, quase um pequeno parque, em Copacabana, tinha sua entrada principal através de uma porte cochère, onde havia uma grande porta, bem pesada, de mogno bem escuro, reforçada com ferros decorados, a porta principal da casa. Por ali se entrava num hall de chão de mármore, e logo à direita do hall estava a porta da saleta.

Era uma mistura de sala de estar, ou sala de visitas, com escritório. As paredes, cobertas de estantes; num dos cantos, alguns dos meus favoritos, como Les Grands Procès de l’Histoire, de Henri Robert, bâtonnier da ordem francesa em fins do século XIX, ou uma coleção de pequenos romances encadernados numa encardenação art nouveau, com muito Henri Lavedan — membro da Academia francesa há um século atrás, e que hoje foi esquecido. Uma das janelas dava para o caminho de entrada da casa, a outra se abria para o jardim da frente, um canteiro de jibóias, bem denso de folhagens pequenas, encerrado por uma virola de coroas-de-cristo, onde todos nós, quando crianças pequenas, nos arranhávamos tentando pular para dentro do canteiro das jibóias.

Havia muitos retratos nas prateleiras e nas paredes da saleta. Numa prateleira, com destaque, em posição central, o retrato autografado que o Kaiser, sim, ele mesmo, Guilherme II, havia dado ao bivô e à bivó, o marechal Luiz Mendes de Moraes e bivó Cecilia, ele ministro da guerra e depois ministro do STM, quando da audiência privada que lhes dera em Berlim ou Potsdam, não lembro ao certo, em 1910. O próprio bivô estava representado na sala, num busto de bronze preso num suporte de madeira, tamanho grande, com as pupilas dos olhos furadas, como era da convenção nas esculturas, o que eu achava estranhíssimo. Na parede oposta, um retrato do Tio Prudente o presidente, fundo bordô, cara séria mas tranquila. Junto da porta de entrada, um quadrinho pequeno com um velho de carinha simpática: era um óleo pintado por minha bisavó, bivó Cecilia, Mme la Maréchale Mendes de Moraes, como se dizia em começos do século XX, na França e no Brasil afrancesado dos nossos Guermantes locais. Retrato de John D. Rockefeller; minha bisavó achava-o encantador, de cara boa, e o tomara como modelo a partir de alguma fotografia. Minha bisavó, maragatona feroz, orgulhosa de seu parentesco a Bento Gonçalves o chefe farroupilha, cujo pai havia na infância dela recebido em casa Gumercindo Saraiva, minha bisavó era uma ingênua quanto à política internacional. Num canto de parede ainda, nos olhavam as armas de São Paulo, com um diploma referente à atuação de vovô em 1932, assinado pelo Christiano Altenfelder e com a dedicatória “ao general Justo.” Não, vovô não era milico, e muito menos general; era advogado vaidosíssimo de sua profissão e de seu prestígio.

No diploma os dois lemas de São Paulo: pro Sao Paulo fiant eximia. Altiora semper petens. Por São Paulo façam-se as coisas máximas. Sempre ambicionando o máximo. (Este último, depois descobri, repetia o lema da família de papai, altiora peto.)

Vendo o general Taurino olhar aqueles retratos todos, toda a memorábilia Mendes de Moraes da saleta — os visitantes sempre olhavam fascinados aquela rogues’ gallery, galeria dos monstros familiares, devo ter lembrado que ali, uns dez, doze anos antes, fora apresentado a remanescentes do governo revolucionário paulista de 1932: Paulo de Moraes Barros e o Zico, Prudente José de Moraes Barros Neto (Zico, porque tinha o Neco, o jornalista, Prudente de Moraes, neto), primos de vovô, e mais o Doutor Christiano, Christiano Altenfelder Silva. Testemunha ocular da história, eu, ali.

A cara do general Taurino, me olhando ali enquanto esperava que vovô chegasse, era desenhada pela angústia. Aquele homem grandalhão, de jeito brusco, o inquisidor-geral dos generais de 64, não podia fazer nada que ajudasse o filho, preso e sendo torturado em Pernambuco pelo próprio grupo militar que colocara o general Taurino no trono da CGI. O filho do general era Sergio Resende, economista, professor da Universidade de Pernambuco — e dito subversivo. Fora preso por ordem do general Justino, comandante do então IV Exército, e o general Taurino nada podia fazer, mesmo sendo poderosíssimo, arbitrariamente poderoso, poderoso como o são os régulos nas ditaduras. Poderoso e impotente.

Chega vovô, cara sempre fechada, os olhinhos azuis miúdos, miúdos, o general se levanta e o cumprimenta. Fiz a sala ao general, me despeço, e penso — por que vovô, civil, pode conseguir o que o general não consegue? (Vovô impetrou um habeas, e Sergio Resende foi libertado. Existia um poder civil semi-invisível, que podia mais que a força bruta e desordenada dos militares.)

Aprendi logo em seguida que muita gente, do lado dos civis, gente que inclusive simpatizava com os generais, era gente que funcionava como intermediários que procuravam a libertação de presos políticos. Cito dois nomes: Adonias Filho, então diretor da Biblioteca Nacional, apelidado Pimpinela Escarlate. E Rachel de Queiroz, com quem mamãe adorava fofocar sobre política ao telefone. E havia também os laços familiares, que iam muito além das posições políticas. O Brasil era, e talvez ainda seja, muito arcaico.

A família de mamãe era um arcoíris político. A filha mais velha de vovô e vovó, Tia Maria, Maria Werneck de Castro, casada com Luis Werneck de Castro, era comunista histórica, amiga de “Maria Prestes,” que é como chamava Olga Benário, fundadora da Aliança Nacional Libertadora, do comitê central do Partidão. Tia Maria esteve presa com Graciliano, Nise da Silveira (cujo marido Mário Magalhães foi meu padrinho de casamento), e aparece várias vezes em Memórias do Cárcere. O segundo filho, Tio Luiz, Luiz Mendes de Moraes Neto, tinha, nos anos 30, francas simpatias pelo nazismo. (Folheei diversas vezes, quando criança, um livrinho de propaganda que estava entre os livros de Tio Luiz, Hitler am Berchstegarten, Hitler bonitinho em trajes civis bávaros, algo tipo The Sound of Music, beijando criancinhas louríssimas, Göring com roupinha tirolesa, chapeuzinho tirolês, e montanhas e pinheiros ao fundo.) Depois de 45, Tio Luiz entrou pela direita na UDN — mamãe, ex-militante da Esquerda Democrática, entrou na UDN pela esquerda.

Em 64, Tio Luiz (ao cunhado, marido de Tia Maria, chamávamos Tio Werneck) era ligado aos ditos aragarcianos da aeronáutica, Haroldo Veloso, Bournier, Leuzinger, Paulo Vítor, porque participara em 1959 da revoada até Aragarças. Em abril de 1964, logo logo depois do golpe dos generais, Tia Maria recebe uma intimação para se apresentar ao DOPS, na Rua da Relação, a polícia política; ia depor perante Cecil Borer — delegado cujo nome assustava, e por muitos motivos. Tia Maria liga para vovó para contar da intimação, porque não falava com Tio Luiz. Mas se organiza rápido a rede familiar de proteção; Tia Maria vai ao DOPS acompanhada de três dos aragarcianos. Entra com eles, depõe com eles, sai com eles. Nunca mais mexeram com ela. E — viva o arcaísmo dos laços sociais brasileiros…

Ajudei três presos políticos. Na verdade, dois presos e um foragido. E estive junto de uma namorada dita subversiva, em seu julgamento e depois na prisão. Conto tudo agora.

O primeiro preso que ajudei foi em 1971. Na casa do Chaim, no Leblon, estava hospedado um cara que a polícia de Minas estava procurando. Seu nom de guerre era Gilberto. Moreno, baixinho, magro, era da Polop (“Política Operária”) ou de alguma facção semelhante. Como ia muito à casa do Jaime — Chaim — conversava muito com o Gilberto, assuntos gerais, digamos assim. Repartíamos um interesse, bom, erótico, em comum, pela cozinheira do Chaim daquele tempo, uma moça de Santa Catarina, lourinha de olhos azuis, e, talvez surpreendentemente, ex-sargento da PM de lá. (E de cujos, hum, favores, desfrutei, e creio que também o Gilberto.)

O Gilberto ficou em casa do Jaime vários meses; foi de janeiro a junho de 1971. Ficava sempre no apartamento; quase nunca saía, e quando saía, era só para ir à esquina comprar cigarros, coisa assim. Um dia, em junho, o Jaime me liga preocupado: alguém teria denunciado que o Gilberto estava morando com ele. Tinha-se que arranjar um novo abrigo para o Gilberto. Desliga, e meia-hora depois me liga de novo, tinha arranjado um abrigo. Agora, o problema era tirá-lo do apartamento no Leblon e levá-lo para o novo esconderijo, um apartamento na rua Assis Brasil, em Copacabana. Era a minha vez. Ia pegar o Gilberto com meu carro, um fusquinha; o Gilberto ia agachado atrás — medo de policiais olheiros na vizinhança, o que de fato estava acontecendo — e eu zanzaria pelas ruas internas de Ipanema e Copa até chegar na Praça Arcoverde, onde o Gilberto ia ficar. Tudo combinado.

Cheguei sem grandes preocupações na casa do Jaime, meia-noite e meia. Entrei com o carro na garagem, fiquei com o motor ligado, ninguém à vista e não existiam câmeras de vigilância naquele tempo. O Gilberto desce pelo elevador (a gente tinha que ser pontual, porque era tudo combinado para funcionar feito um relógio) e caminha pelas sombras e entra no meu carro e se agacha atrás. Saio pela rampa da garage subterrânea e desço a Venâncio até a praia. E começo a zanzar pelas ruas internas. Aí, claro, começo também a ficar nervoso, mas não falo nada, e nem o Gilberto, já que pelos vidros quem estava do lado de fora podia me ver falando — com quem?, poderia se perguntar.

A paranóia, ao menos nessas horas, é um dos direitos humanos fundamentais.

Vou zanzando pelo Leblon, da praia às ruas de dentro, das ruas de dentro à praia. Não andávamos pela Ataulfo de Paiva porque era muito iluminada. Em 71, a praia era bem escurinha, e mais protegida. Entro em Copa pelo Corte do Cantagalo. Desço a Miguel Lemos, dobro em Barata Ribeiro e pego o túnel. E — horror — entre Sá Ferreira e Souza Lima, a Raul Pompéia está bloqueada pela metade. Batida do doi-codi.

Faziam aquilo mais para intimidar. Porque presumiam (isso me foi contado depois) que a turma de esquerda era sofisticada, planejava tudo muito bem, tinha uma logística mais que perfeita; não esperavam pegar nada naquelas batidas, só um ou outro garotão maconheiro. Pois não era nada disso: tirando o pessoal de apoio do Partidão, que tinha muita experiência com rotas de fuga e esconderijos seguros, o resto tudo era feito no tapa.

E — estávamos ali diante de vinte soldados com roupas de camuflagem, fuzis apontados para nós, que tínhamos que passar por eles devagarinho devagarinho. E devagarinho foi: passei a dez, quinze por hora. Me olharam na cara, olhei em frente, fazendo cara de cansaço, ou tentando fazer cara de cansaço. Passei de-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho. O raio do corredor polonês não terminava nunca. De-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho.

De repente terminou. Engatei a segunda, fui até a esquina de Francisco Sá, desci para Copacabana, fui direto, fodam-se as luzes todas da avenida brilhando sobre mim. Entrei em Duvivier, peguei Barata Ribeiro, subi Assis Brasil, deixei o Gilberto. Nunca mais o vi.

Voltei para casa, em Joaquim Nabuco. Estava todo borrado, admito. Tive que lavar calça e cueca, tudo fedorento, às duas e meia da manhã. Xinguei xinguei adoidado urbi et orbe, tout le monde et son père. Mas o Gilberto estava a salvo no apartamento de amigos.

Logo em seguida o Chaim foi preso: a denúncia a respeito do Gilberto era verdadeira.

Foi a segunda vez que me meti na confusão cinzenta dos policiais ligados ao dito aparato de segurança, e o pessoal dos movimentos políticos — digo confusão cinzenta porque ouvi de muita gente da polícia palavras simpáticas à turma de esquerda que eles perseguiam. Sim, o discurso era numa direção, as ações iam no sentido contrário. Mas o espectro que ia de um lado ao outro, da polícia aos subversivos, se olhado de perto, era cinzento, sim.

Chaim preso. Nem pensei ou duvidei, saí logo tentando fazer alguma coisa por ele. Tinha dois caminhos: falar com Flora Frisch, Flora Strozenberg de casada, advogada de presos políticos, e pedir ajuda a um amigo, na verdade irmão analítico, isto é, colega de grupo de psicanálise, Jacob Bryskier, delegado da polícia civil. Liguei para Flora. Marcamos um “ponto,” encontro para trocar informações, na Praça Arcoverde. Tinha minhas instruções: devia cumprimentar Flora como se ela fosse minha namorada, e ficaríamos andando abraçados à volta da praça, conversando baixinho. Flora me disse então que, dois dias depois da prisão, não sabiam ainda onde o Jaime estava, se no DOPS ou no doi-codi. Tendo alguma idéia do lugar da cana, se impetrava imediatamente um habeas — e quando o exército reconhecia ter um prisioneiro, isso era sinal que as torturas iam cessar, ou ao menos que iam cuidar para que não acontecessem “acidentes de trabalho” com o prisioneiro. O objetivo era sempre mudar o status de “desaparecido” para “prisioneiro por subversão.” Estes nunca sumiam de vez.

Com meu amigo delegado falei dois dias depois. Ele me trouxe um colega que trabalhava no DOPS, e que, este outro, me disse sobre o lugar onde o Chaim estava. Foi direto: ele está em tal e qual lugar, e não foi maltratado.

(Em termos: foi colocado nu contra a parede numa cela fria. Mas não bateram nele.)

Chegando em casa, vi um primo com quem não falava há muito tempo. Sabia que era ligado a gente da aeronáutica e da marinha. Como eu ia almoçar, sentou-se à mesa comigo. No meio do almoço me diz, sei que seus amigos subversivos foram presos. (Lula Costa Lima tinha estado preso antes do Chaim, mas só soube depois que saiu da cadeia.) Diz entre os dentes: meus amigos do Cenimar (o serviço secreto da marinha) me dizem que você também vai ser chamado.

Me levanto enojado de raiva. Quase vomito. Não digo nada, no entanto. Mit der Dummheit kämpfen Götter selbst vergebens. É Schiller, A Donzela de Orléans: lutando contra a estupidez, até os deuses pedem arrego.

O terceiro caso deu-se em começos de 1976. Leo Benjamin era colega de turma de Margô, minha mulher, na faculdade de medicina. Sabendo que conhecíamos muita gente, me passa um memorial escrito por seu irmão, César Benjamin, o Cesinha, então com dezessete anos, preso numa prisão militar, e arrazoando contra a ilegalidade de sua prisão. Sabia da história do Cesinha, que não vou repetir aqui, e sobretudo sabia da conversa de sua mãe, D. Iramaya, com Adyr Fiúza de Castro, general comandante do CIE, o Centro de Informações do Exército: nesta conversa, o general conclui, para D. Iramaya, meu guia é a violência, só acredito na violência.

Recebemos o memorial numa quinta ou sexta-feira. Já morávamos em Petrópolis, naquela época em casa de meu tio Emanuel, irmão caçula de mamãe. Havia um hábito nos fins de semana: eu funcionava como o chefe da ucharia. Comprava comidinhas especiais, um engradado de cerveja Bohemia, meu tio liberava o uísque (mas em geral ficávamos na cerveja), e a gente ia curtir um bom papo no jardim, na beira da piscina. Como meu tio era conselheiro do conselho de contas dos municípios, chamávamos àquilo de “boteco do seu conselheiro.”

Um dos que vinham sempre era Lywal Salles, diretor do Jornal do Brasil. Todo mundo muito reacionário, pró-governo; vozes mais liberais, só Rodolfo, ex-embaixador em Angola, ex-genro de Vinicius, e Margô e eu. Mas o papo era gostoso, e a comida do boteco também.

Naquele fim de semana estava chovendo, e meus tios tinham descido a serra. Estávamos sozinhos Margô, eu, e Pedro, então com poucos meses. Domingo, toco para Lywal, com o memorial do Cesinha na mão, gelo a cerveja, saio para comprar dois ou três frangos de televisão de cachorro (ou “frangos vira-vira”) e fico esperando Lywal. Ele chega, já estávamos no segundo copo de cerveja. Olha os frangos, diz, odeio galinha assada.

Penso: começamos bem. Mas logo a gente arranja umas iscas de filé para Lywal e começo a conversa. Passo para ele o memorial do Cesinha. Ele lê em diagonal e me diz, mais um daqueles seus amigos comunistas? Não respondo à provocação, explico para ele o caso todo. Me diz: vou passar para o Castelinho.

No dia seguinte é o tema da Coluna do Castello. Na terça-feira, uma resposta oficial do ministro da justiça: a prisão do Cesinha é legal, tratava-se de um subversivo perigoso etc etc. Na terça-feira desço para me encontrar com Prudente, meu primo, então presidente da ABI. Me recebe de tardinha, seis e meia. Me faz ler o memorial do Cesinha, pois estava cego devido ao câncer que ia matá-lo. Levo uma hora e tanto lendo a papelada. No final da leitura me diz: Francisco Antonio, ainda existe um fiozinho de legalidade neste país. Vamos nos segurar nesse fiozinho.

Algumas semanas depois nos encontramos, o Neco, o Prudente, Margô e eu numa missa qualquer da família. Sabia que o Cesinha fora banido e deportado, e que estava na Suécia. Pergunto a Prudente como tinha sido a coisa. Me conta, rapidamente: Francisco Antonio, depois que você saiu, liguei para Humberto Barreto, secretário de imprensa do Geisel, e resumi para ele a questão, pedindo ajuda. Humberto Barreto, no biriba com o Geisel no domingo, apresentou o caso do Cesinha como sendo um desafio à autoridade do presidente. O Geisel ficou furioso, mandou lavrar o decreto de banimento do Cesinha, determinou que se preparasse o passaporte correspondente, e ordenou ao primeiro exército a soltura e o envio do César para a Suécia.

Foi uma operação de guerra: jipões com militares de confiança armados, o Cesinha debaixo de uma lona, protegido por fuzis e metralhadoras em riste. Entraram direto na pista do Galeão, o avião com os motores já ligados, pronto para taxiar na pista. Colocam lá dentro o Cesinha, entregam a ele, dentro do avião o passaporte — e o enviam para a Suécia.

No Natal, Margô, Pedro e eu recebemos um cartão da D. Iramaya e família. Feliz Natal, ótimo Ano Novo. E muito obrigado, vocês sabem bem por que.

Ainda falta contar a história de minha namorada subversiva. Foi em começos de 1972. Era miúda, morena mas com dois olhos ultra-azuis; muito bonitinha. Engenheira recém-formada, estava fazendo um curso de psicologia. Tinha participado brevemente de um grupo ligado à luta armada, porque seu ex-marido era militar, e de esquerda, e estivera junto com ela nalgum dos grupúsculos da esquerda daquele tempo. Tinha dois filhos pequenos. Vou chamá-la pelo nome de guerra: Yara.

Foi um namoro rápido, uns dois meses, rápido e convencional, com cineminhas, papos em bar, e encontros no meu apartamento de Joaquim Nabuco. Nunca pernoitava comigo, pois tinha que cuidar dos filhos. Terminamos, ficamos amigos.

Um dia me liga. Ia ser julgada numa auditoria da aeronáutica. Queria que, como amigo, estivesse presente. Como na maior parte daqueles processos, a coisa estava combinada desde antes. Ela e o ex-marido iam se declarar culpados, iam receber uma sentença leve, e se encerrava o caso. Cheguei lá a tempo de ouvir a sentença, três meses. Era o acertado. Yara, olhos azuis brilhando, estava contente.

Me liga uns dias depois de novo. Estava na cadeia, mas tinha acesso ao telefone. Me pediu que fosse vê-la, e lhe levasse uns biscoitos. Fui, apavorado, claro. Era na rua da Relação, junto do DOPS. Me explicou em detalhe: você entra, cruza na diagonal o pátio, e chega à carceragem feminina. Manda me chamar. Foi o que fiz. Tinha uma cantina ali. Me sentaram na cantina, e em dois ou três minutos chega Yara com uma outra presa, as duas de uniforme de prisão, uma mulata. Me apresenta e vai explicando direto, é minha colega de cela, presa por prostituição e um pequeno roubo. Ficamos batendo papo ali, tomando guaraná e comendo os biscoitos que levei para Yara.

Saiu da prisão, e sei que fez carreira como professora universitária. Nos vimos há uns dez anos atrás, e em 2000, soube chocado que Yara tinha morrido num acidente de carro.

Nunca fui militante de grupo de esquerda. Por que agi, então, desse jeito, me arriscando para defender gente que às vezes nem conhecia, ou mal conhecia? A resposta é simples. Tem uma versão fresca: noblesse oblige. Tem outra, que esclarece meus motivos: questão de decência humana. Imperativo moral. Solidariedade. Luta contra a canalhice, contra a indignidade.

E isso é o significado de: noblesse oblige.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Laura minha neta


Neta minha e de Margô. Aqui em casa, no sábado 10 de maio.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

1968, XVI - Revolução nos costumes, revolução sexual


Começo em Balzac:

Montriveau pâlit, et tomba pour la première fois de sa vie aux genoux d’une femme. Il baisa le bas de la robe de la duchesse, les pieds, les genoux; mais, pour l’honneur du faubourg Saint-Germain, il est nécessaire de ne pas révéler les mystères de ses boudoirs, où l’on voulait tout de l’amour, moins ce qui pouvait attester l’amour.

A cena é famosa e é um lugar-comum. Traduzo: Montriveau empalidece, e cai pela primeira vez em sua vida diante dos joelhos de uma mulher. Beijou a ponta do vestido da duquesa, os pés, seus joelhos; mas, guardando a honra do faubourg Saint-Germain, é necessário não revelar os mistérios de suas alcovas, onde tudo se desejava do amor, exceto o que podia atestar este amor.

Dito às claras: o general de Montriveau esmera-se em carícias orais íntimas na duquesa de Langeais. A cena, já disse, é famosa, e se deixa compreender muito bem, embora Balzac seja discreto a respeito, escancaradamente discreto.

— Chère Antoinette, s’écria Montriveau dans le délire où le plongea l’entier abandon de la duchesse… Querida Antoinette, disse Montriveau, no delírio em que foi jogado pelo total abandono da duquesa… Precisa dizer mais alguma coisa? Não.

Logo em seguida, um companheiro de Montriveau, o marquês de Ronquerolles, explicita para o general seu amigo as regras do jogo amoroso na haute gomme parisiense: Apprends d’abord que les femmes de notre faubourg aiment, comme toutes les autres, à se baigner dans l’amour; mais elles veulent posséder sans être possédées. Elles ont transigé avec la nature. La jurisprudence de la paroisse leur a presque tout permis, moins le péché positif. Aprenda, primeiro, que as mulheres de nosso grupo gostam, como todas as outras, de banharem-se no amor; mas elas desejam possuir sem serem possuídas. Transigiram com a natureza. A jurisprudência da paróquia permite-lhes quase tudo, menos o pecado positivo.

Ou, dito como era quase um provérbio anunciado pela namorada, lema de conduta, nos namoros no Brasil, anos 50 do século vinte, topo tudo, ou topo quase tudo, menos o essencial; menos na frente.

Balzac nos ensina mais: deixamos para trás La Duchesse de Langeais, de onde pesquei tais passagens com um código de conduta sexual bastante explícito, e passemos à novela seguinte da trilogia Histoire des Treize, que é La Fille aux Yeux d’Or, “A jovem dos olhos dourados.” No clímax amoroso, quando Henri de Marsay se encontra, enfim, com a moça dos olhos cor de ouro, Paquita Valdez, esta é descrita como, Mais, chose étrange! si la Fille aux yeux d’or était vierge, elle n’était pas certes innocente. Mas, coisa estranha, se a jovem dos olhos dourados era virgem, não era no entanto inocente. A virgindade de Paquita é assim descrita um pouco adiante: l’innocence purement physique de Paquita, a inocência puramente física de Paquita…

Balzac deixa claro, na cena do encontro amoroso entre de Marsay e Paquita, que estes consumam — de algum modo — o ato amoroso, embora seja elíptico a respeito, e que Paquita continua, tecnicamente, virgem após a noite de amor do casal, quando se refere à l’innocence purement physique de Paquita.

Balzac faz alusões, não diz muita coisa. Fui então a um clássico mais clássico ainda, um que trata só do erotismo: Brantôme. Fui ao Vie des Femmes Galantes, onde, no século XVI, Brantôme nos fala das jovens que sacrificam no altar da arrière-Vénus, da Vênus gozada por detrás, para preservarem le pucelage, a virgindade. Nunca ninguém fez um estudo sobre a sexualidade da classe média urbana no Brasil, no pós-guerra, isto é, depois de 1945, mas, se tomamos como indicativo as historinhas pornôs de Carlos Zéfiro, a prática do arrière-Vénus era comum, na vida amorosa antes do casamento, justamente para que a virgindade fosse preservada. Seguindo-se o exemplo de Paquita Valdés, em La Fille aux Yeux d’Or.

Uma vez jantamos, meados da década de 70, minha mulher e eu, na casa de amigos com Silviano Santiago. Não lembro a razão da conversa que se seguiu, mas alguém começou a discutir a suposta revolução sexual dos anos 60. Silviano deu uma explicação que nos pareceu muito certa. No pós-guerra, a mulher jovem ganhou independência. Embora os suplementos femininos e as seções idem dos jornais e revistas a tratasse como um ser essencialmente doméstico e submisso a pais, irmãos e maridos, o fato é que a mulher ganhou liberdade, ganhou espaço, e entrou no mercado de trabalho, lado a lado, ombro a ombro com o homem. Quis, então, os mesmos direitos, a mesma liberdade nos costumes e na vida amorosa.

Não foi, portanto, a pílula. A pílula anticoncepcional pode até ter sido consequência desse avanço da mulher sobre um espaço social que ficava restrito e dominado pelos homens.

Nos anos 40 e 50, a mulher era tipificada, classificada. Começava com a grande divisão, moças boazinhas e moças mazinhas. A década de 60 começou, assim, com distinções claras determinando regras claras, socialmente aceitas, de comportamento: havia as mulheres “honestas,” e as que não o eram. As primeiras eram as donzelas, as casadas “de vida exemplar,” e as viúvas voltadas aos filhos e à casa. As outras, um espectro largo, que começava nas desquitadas, passava pelas meninas que se haviam “perdido” com algum namorado, isto é, que haviam transado com algum garoto e — assim se contava — “tinham sido abandonadas porque homem não gosta de mulher fácil” — e terminava nas atrizes, coristas, cortesãs (havia isso; também ditas putas de alto bordo), e as putas, simplesmente. Dentro do espectro das meninas “perdidas” havia ainda uma distinção fina, que separava “bandidas” das “pistoleiras.” Nomes que, se a gente pensam bem, eram quase elogios; menina bandida é menina que tomou nas próprias mãos sua conduta, sua vida. Às praticantes do arrière Vénus guardava-se o nome pejorativo, galinhas. Termo que, nos anos 50 e 60, só as designava, e mais nenhuma outra. O motivo, não sei.

Esta era uma tipologia finamente ajustada, um zoo do comportamento sexual baseado num código moral que vinha desde Brantôme, ou mesmo de antes, mas não de muito antes. E que, muito provavelmente, não existia na Idade Média, onde se olhava para essas coisas de modo muito direto; que o digam os textos incidentais e os comentários dos livros de linhagens portugueses, ou, mais explicitamente, os contos de Boccaccio. A hipocrisia sexual é, me parece, uma invenção, uma novação da burguesia, ou das classes médias urbanas.

Na prática, no Rio zona sul dos anos 50 e começos dos 60, a coisa era outra. Talvez o arrière-Vénus não fosse tão difundido como aparece nos livrinhos de Carlos Zéfiro, mas com certeza o petting, ou, em brasileiro, a sacanagem light & heavy, era comum nos casais de namorados. Ninguém se segurava; e, de vez em quando, alguma moça “se perdia.” Mas no espaço público a hipocrisia pairava soberana. Em 1966 Realidade, uma revista mensal da Abril, com artigos sobre variedades e um tom ligeiramente erudito-pernóstico-serioso, publicou uma matéria de capa com o título, “Eu fui mãe solteira.” Era o depoimento de uma menina cujo nome a reportagem escondia e que tinha engravidado ao transar com o namorado. Tinha dezesseis ou dezessete anos quando teve o filho; creio que já tinha chegado aos dezoito anos quando deu a entrevista a Realidade. Todo mundo sabia quem era a moça: frequentava a praia na Montenegro, em Ipanema (hoje, Vinicius de Moraes, homenagem que Vinicius recusaria sem dúvida). Era bonitinha, moreninha de cabelos encaracolados, brincos de argola quando ainda não eram moda os brincos de argola. Lembro de seu apelido: Tuca. Nunca soube seu nome.

A moça cometeu duas transgressões imperdoáveis. Primeiro, deu. Deu para o namorado. Depois, recusou-se a casar com ele, para “reparar o mal irreparável.” Tudo isso aparece no depoimento para Realidade, ou era sabido do pessoal que a conhecia. O governo militar teve um acesso de fúria puritana, e mandou recolher Realidade. A matéria era água com açúcar; mais decorosa ainda, mesmo, que este texto meu agora. Mas — via-se como algo que atacava a moral da família brasileira, ou coisa parecida.

1966 é quando a mini-saia, invenção ultragenial de Mary Quant, aparece no Brasil. E’ interessante falar um pouquinho mais sobre a moda da mini-saia. Mary Quant foi uma designer que produzia para um mercado específico: o mercado Silviano Santiago. Explico: o mercado para mulheres jovens, que trabalhavam, com vida independente. Eram moças que não queriam se vestir como meninas pré-adolescentes, ou como senhoronas. Assim a gente vê um paralelo entre a moda sexy e prática, de Mary Quant, e as mudanças que iam acontecendo no comportamento sexual, na classe média urbana brasileira. Ou no seu núcleo, Copacabana e Ipanema no Rio, anos 60 e começos dos 70. A moda Mary Quant dizia das mudanças de comportamento entre as mulheres.

(Lembro da discussão que houve, 65, 66, no Brasil, sobre a mini-saia. Já não ficava tão bem dizerem que a mini-saia era imoral. Diziam então que era antiestética porque mostrava os joelhos, parte supostamente feia da anatomia. Mas esses joelhos foram logo cobertos com botas thigh-high, e o argumento perdeu validade, ou sentido. e a sensualidade escancarou-se com o uso das botas thigh-high.) Os franceses pegaram a idéia de Mary Quant e foram adiante. Courrèges fez uns minivestidos lindos, bem haute couture. Em 66 saí com uma amiga que estava elegantíssima usando um desses vestidos Courrèges, imitando quadros de Mondrian. Cardin juntou botas brancas ou coloridas, de vinil, até o joelho, E Rudi Gernreich e Ungaro lançaram as botas acima do joelho, as botas thigh-high. Todas, aliás, flat, de salto baixo; a bota de cano muito longo era fetiche suficiente. A moda passou então a ser agressivamente erótica.

A coisa explodiu em 1971, quando inventaram as hotpants, o short pra sair de noite. Eram shorts bem curtinhos, de cetim, veludo, shorts curtos e de cintura baixa, algumas vezes com um cintinho tipo fetiche extra. Foi um período brevíssimo, de abril a julho ou agosto de 1971. Você saía e só via nas boates, nas discotecas, as meninas de short e botas pretas, brilhantes, longas, presas no meio das coxas com o tal cintinho que segurava tudo alto, esticado, no lugar. Era agressivamente erótico, e a uma tal moda correspondeu uma mudança de comportamento - em massa. A virada (literalmente...) se deu (epa!) em 1971, e não em 68. Foi aí a dita revolução sexual. Explicitada sem véus na moda, superprovocante, supererótica, daquele período.

Em 1968, no Brasil, mesmo quem estava na vanguarda intelectual ainda via o comportamento sexual pelo modo antigo. Flavio Macedo Soares publicou em 1969, em Cadernos Brasileiros, revista de cultura modelada sobre o Encounter inglês, e financiada por um fantasmagórico “Instituto Latino-Americano de Relações Internacionais” (que, dizem, era um alias para a CIA), Flavio publicou um ensaio sobre o Festival de Cinema do Rio, acontecido em 1968. Faz uma análise das meninas (depois chamadas groupies) que circulavam no festival:

“Essa falange era composta de moças em geral muito atraentes, e que eram as as mais jovens de todas [no festival], a geração de dezoito, dezenove anos. Fora do festival estão estudando na PUC e fazendo suas primeiras armas no circuito Country-Jirau-Bateau [clube e discotecas do Rio 68]. São o que há cinco anos atrás se chamava “meninas-programa”: querem sair, sair, sair, com gente que pague tudo o que elas querem, gente cheirosa, bem vestida, de carro esporte; querem ter mais sucesso que a amiga, e são capazes de dar em cima de um homem que detestam para tirá-lo de uma rival. O preço de qualquer um desses pequenos sucessos é ir para a cama. E isso por atacado, para valer, sem muita conversa. São meninas ainda, mas meninas trágicas, para quem a vida passa depressa e é preciso pegar o que se pode enquanto se pode; não querem nem mais a ascensão social e o casamento rico depois de uma boa dose de experiências. Não, isso já desapareceu, a experiência ficou crua, brutal. E’ preciso dançar toda a noite com uma música violenta a gritar nos ouvidos, beber na escuridão cheia de fumaça, e se deixar cortejar e apalpar, e é preciso a cada dia se provar, se provar, antes que a vida acabe.”

Fomos contemporâneos de colégio, e amigos, Flavio e eu. Mas sua visão é curiosamente, diria até, espantosamente, passadista. Flavio não via o que estava acontecendo: uma mudança nos costumes porque a mulher invadira, tomara espaços que eram, antes, privilegiadamente masculinos. Essencialmente, a tese de Silviano.

Outra marca na moda da mudança dos costumes foi o surgimento do biquini-tanga, ou string bikini, na praia de Ipanema, o que aconteceu em 1971. Na verdade, era uma recriação do biquini original, de Louis Réard, apresentado em Paris em 1946. A calcinha do biquini de 1946 já era mínima, mas o soutien cortininha só apareceu uns anos depois; e o nome bikini vinha do atol, no Pacífico, no qual se fizeram experiências com a bomba atômica — a idéia é que era moda igualmente explosiva. A tanga surgiu na passagem de 70 para 71 no pier, nas Dunas do Barato, trecho de prais em frente à rua Farme de Amoedo, em Ipanema, de onde se projetava para o mar a construção do emissário submarino de Ipanema. Havia ali um acúmulo de areia, as dunas, o cheiro de mato queimado, o “fuminho,” a maconha, era constante na área, a polícia não incomodava, porque só se preocupava com subversivos, comunistas et caterva, e a roupa de banho era ousada. Acontecia um ou outro topless, e inventavam-se modas. Uma delas, o uso de um conjunto de calcinha e soutien americano como roupa de banho das meninas; eram os conjuntinhos Melody, que qualquer contrabandista de calças jeans vendia — porque calças jeans só se compravam nos contrabandistas, da Dona Glorinha na Correia Dutra no Catete ao Mercadinho Azul em Copacabana.

Eram reduzidos, os conjuntinhos Melody, pequeninos. E foi daí, me parece, que surgiu a tanga. Marcando, como as hotpants e acessórios, ou a mini-saia, uma mudança completa no comportamento da mulher, nas grandes áreas urbanas do Brasil.

Mudou tudo? Aparentemente, hoje os namorados que o desejarem têm liberdade nas suas práticas amorosas. Mas tem também grupos que seguem a cartilha de Bush filho, e usam (e praticam o dito) camisetas com frases tipo “Sou virgem e me orgulho disso.” E, nos anos 90, numa coluna de aconselhamento amoroso de um jornal do Rio, vi que pastores evangélicos aconselhavam — o jogo antigo do sexo pelo arrière Vénus – às suas paroquianas. A uma moça casada que desejava satisfazer um namoradinho eventual, sem praticar o adultério, aconselhou o ministro, dê a frente para seu marido; para o namorado dê atrás. A outra, solteira e fisicamente virgem, aconselhou deixar que o namorado se servisse, como disse o personagem de Amarcord, de son intimità posteriore.

Como os curas paroquianos que, jesuiticamente, aconselhavam e orientavam as liberdades das grandes damas de Balzac. Como La Fille aux Yeux d’Or. Como algumas das moças nobres de Brantôme.

(Na imagem, cena de rua, 1971. Hotpants e botas thigh-high.)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Margô: testemunho do Pedro; datas

Pedro postou no seu blog um testemunho detalhado sobre a mãe:

http://pedrodoria.com.br/2008/04/15/minha-mae/

Algumas correções: Margô não era tímida, era recatada e discreta. Detestava gente chata, a quem devesse as hipocrisias sociais correntes, a quem devesse tratar bem e aturar. Fugia então, se escondia.

Acerto também as datas.

Nos conhecemos na casa de Nise da Silveira, numa reunião do Grupo de Estudos C. G. Jung, em 16 de maio de 1973, uma quarta-feira. Foi elétrico. Saímos depois, vários amigos e Margô no meio, para jantar no Recreio, uma churrascaria ali perto, e levamos junto o marido da Nise, Mário Magalhães. Na conversa no jantar descobriu-se que Mário e Nise tinham sido muito amigos dos avós de Margô e de seu pai. (Mário foi nosso padrinho de casamento.)

Duas semanas depois saímos pela primeira vez. Margô, estudante de medicina e querendo fazer psiquiatria, me pediu que a levasse ao serviço da Nise, no hospital de Engenho de Dentro. Passamos junto boa parte do dia — voltando de Engenho de Dentro, fomos à Quinta da Boa Vista lagartixar, porque a tarde estava de veranico de maio.

Aí viajei, fui a um congresso científico na Europa, e fui conhecer alguns cantos das oropas, Roma, Florença, Londres, tipo mochileiro. Voltei em 14 de agosto. Liguei para Margô chegando; voltamos a sair. Começamos a namorar nos inícios de setembro, resolvemos casar pouco depois, e nos casamos em 21 de dezembro de 1973. Sugeri eu mesmo a data, porque era o solstício de verão. Coincidência: era o dia em que se faziam batizados e casórios na família dela, desde meados do século XIX, em homenagem a uma avoenga dela, cujo retrato devidamente entronizamos então na parede com retratos dos antepassados aqui em casa.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Margô, filmes

Vai em suite ao que Pedro postou no blog dele.

O filme de Bergmann favorito de Margô era Fanny e Alexander. Mas, ultimamente, seu diretor favorito tinha passado a ser Clint Eastwood. Filmes favoritos deste: Midnight in the Garden of Good and Evil, The Unforgivable. Ainda baixei para ela rever - não deu tempo - dois filmes que nos haviam impressionado muito: Providence, de Alain Resnais, e Identificazione di una Donna, de Antonioni.

Recusou-se a rever comigo L’Année Dernière à Marienbad. Mas vimos juntos, várias vezes, The Godfather, o ciclo completo, e o Guerra e Paz russo, de Serguei Bondarchuk. E uma piada sua: segundo Margô, Le Dernier Tango à Paris, que consideramos um dos grandes filmes de todos os tempos era, An American in Paris, Twenty Years Later

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Margô


Margô, minha mulher, Margareth Rubim de Pinho Accioli Doria, morreu ontem. Tinha 55 anos; quando nos casamos tinha 21 anos e eu quase trinta — fui chamado de infanticida, o termo de então para pedófilo. Margô descrevia nosso casamento como uma sequência de filmes. Começava com Nove e meia semanas de amor, e seguia com uma comédia água-com-açúcar bem anos 50 de Cary Grant e Doris Day, numa casa cheia de jardins, gatos e cachorros.

Terminou como uma Love Story cruel. Não foi leucemia, foi outro câncer. Quase quatro anos entre as primeiras manifestações da doença, e a morte.

Tivemos três filhos. Vivemos boa parte da nossa vida de casados na casa tipo Doris Day & Cary Grant em Petrópolis. Agora, tive cortada a metade direita de meu corpo. Vou seguir adiante — me arrastando.

(Na foto, de 1974, novembro. Pedro tinha nascido duas semanas antes, estávamos em casa de papai, e tínhamos brigado, alguma coisa que não me lembro. Ela estava furiosa comigo.)

domingo, 23 de março de 2008

1968, XV - A moveable feast, III

A terceira grande festa aconteceu duas semanas antes do Ato 5, em fins de novembro de 1968. Foi dada em minha homenagem e em homenagem a Marcos Vasconcellos. Tinha feito, dias antes, vinte e três anos. Logo em seguida recebo um presente especial, as provas em paquê de meu primeiro livro, Marcuse Vida e Obra, a ser publicado pelo João Ruy, pela José Álvaro Editor, conforme combinado em casa de meu primo, dois meses antes.

Por que Marcos Vasconcellos? Marcos tinha uma casa em frente à casa do meu amigo que me oferece a festa e também fazia anos em novembro. Casa bonita a do Marcos, estilo clean, com uma piscina que dava vista para toda a Lagoa e para o Jardim Botânico, uma varanda sobre a zona sul do Rio. Foi nesta piscina e nesta varanda sobre o cartão-postal da zona sul que, meses mais tarde, Marcos recebeu um tenente do exército que lhe deu voz de prisão. Marcos estava com uma amiga; bebia uísque, o dia era ensolarado e de céu azul. O tenentinho apressou-o, vai se arrumar, o senhor está preso! Responde Marcos, antes toma comigo um uísque. Olha a paisagem. Olha a moça aí. Aproveita um pouquinho. Você não vai ter outra chance de beber um uísque tão bom. Olha a paisagem: sua casa não tem, nunca vai ter uma paisagem como esta. Olha a moça: você jamais vai comer moça tão bonita.

Vou preso com você, sim. Mas antes relaxa meia-hora e aproveita um pouco da minha boa vida.

(Agora, algo da história da editora, da José Álvaro Editor. Quem a fundou foi um jornalista do Correio da Manhã, nos anos 50, José Álvaro. Nos domingos escrevia uma coluna, J, J & J — não lembro quem eram os outros JJ. A José Álvaro publicou muita crônica, muita coisa de autor que despontava. Em meados dos 60, Zé Álvaro vende a editora para João Ruy. No pacote, um sucesso de vendas, a coleção Vida e Obra, com biografias de Freud, Jung, Brecht, todo esse povo. Nos anos 70 a José Álvaro passa para Fernando Gasparian, que havia comprado também a Paz & Terra, de Enio Silveira. E o José Álvaro original se muda para Petrópolis, onde faz jornalismo no Diário de Petrópolis e onde, enfim, vou conhecê-lo. Ficamos amigos, passo a escrever muito para o mesmo jornal, que ele, Zé Álvaro, termina editando, até sua morte em 1979.)

A festa em minha homenagem e em homenagem ao Marcos foi num sábado, o último daquele mês de novembro. Faço as contas: 30 de novembro de 1968. A casa onde fizemos a festa tinha três andares, e ficava meio acavalada na encosta da Floresta da Tijuca subindo para o Corcovado. Da rua até sua entrada principal eram uns quarenta e cinco, cinquenta degraus. Fui para lá ajudar meu amigo. Muita cerveja, uns dez engradados com aquelas garrafas antigas de cerveja, de vidro grosso, o casco marron. Coisa de supermercado para fazer as comidas. Tinha que ajudar a levar tudo para cima, subindo aqueles cinquenta degraus. Peguei a primeira caixa de cerveja, penei, parei bufando nos primeiros vinte degraus. Chego lá em cima arrebentado, sem saber como fazer para carregar as outras caixas.

Meu amigo me mostra: olha só, diz. Se curva, joga sobre os ombros o caixote, e sobe correndo, de uma vez só, os cinquenta degraus. Pergunto como ele, quinze anos mais velho que eu, faz aquilo. Responde bruto:

— Fui besta de carga em Buchenwald.

Meu amigo, judeu, estivera preso num campo de concentração nazista. Estamos, naquele momento, a vinte e poucos anos de distância do fim de Hitler, mas me assusto e me sobressalto, uma sensação de horror, momentânea, me agarra. Ele percebe e continua, esquece, estou aqui, e já é passado.

Voltamos à preparação da festa. As caixas todas de cerveja e de cocacola na cozinha e na copa, está na hora de um cochilo, e da gente tomar banho e se arrumar. Descanso, me banho, me visto, são nove horas, o pessoal vai chegando, vai chegando.

A festa enche. A casa era grande, mas a sala fica compacta de tanta gente. Não tem muita luz, tem música alta, tem gente dançando, gente se agarrando, gente ficando muito doida. Nalgum canto, fuminho correndo, gente sentada no chão, doidona.

Como de hábito, como nas outras festas, glitteratti e beautiful people. Vejo de relance algumas atrizes de cinema, está realmente escuro, mas parece que o pessoal do cinema novo baixou todo no pedaço. Uma das atrizes se agita mais; vou chamá-la Isadora. Vestida de branco, um vestido comprido e esvoaçante, molengo, Isadora está no meio da sala, junto de uma mesa baixa, mesa de centro. Pede música lenta, colocam alguma coisa mais devagar. Sobe na mesa, e começa a se despir, começa um strip. Todo mundo bate palmas, o ritmo das palmas é diferente do ritmo da música, mas ninguém ouve mais a música, só se ouvem as palmas e só olham para Isadora, que vai se despindo. Quando tira o soutien, grita, quem quer me comer? quem quer me comer? sou muito experiente, já fiz quatorze abortos…

Apago pouco depois disso, num dos quartos da casa. O domingo, primeiro de dezembro, acorda nublado. Não vai dar praia; e começa o dezembro do Ato 5.

Houve outras muitas festas em 68, claro. Por exemplo, a festa de despedida de Marcito, Marcio Moreira Alves, em fins de setembro, na casa de Heloisa Buarque de Holanda, no Horto. Mas muita gente já contou sobre esta festa — Marcito ia para a Europa, e deixou para trás toda a tempestade que desabou feroz com o Ato 5.

Vou contar, ainda, sobre uma última das festas do ano, uma festa que teve uns dez casais, se tanto; uma orgia, bacanal, suruba, dêem o nome que quiserem. Deprimente como filme de Antonioni, como La Notte ou L’Eclisse.

Um amigo me pega em casa, em Botafogo, o Beto, numa rural wyllis. Entro, vejo gente que não conheço; umas moças até que bonitinhas, uns carinhas desconhecidos. Me diz, vamos a uma festa no Alto da Boa Vista, no meio da Floresta da Tijuca.

Vamos pela Avenida Niemeyer. Em São Conrado, uma parada, para pegar mais um convidado — convidado? era tudo uma coisa improvisada, estava parecendo. Percebo que dois outros carros estão nos seguindo; param enquanto embarca o tal convidado de São Conrado. Mais velho que nós, todos pelos vinte e poucos anos; teria talvez quarenta anos. Era piloto da Panair, logo soube; desempregado, portanto. No fim de São Conrado embicamos à direita, pela Estrada das Canoas. Passamos o viaduto, descemos a estrada junto à Pedra da Gávea, deixamos para trás a Gávea Pequena, andamos mais um pouco e chegamos a um portão com dois marcos imensos, lado a lado, de pedra. Além do portão e dos marcos, uma estrada entrando num parque escuro — ainda assim, a noite estava límpida, era junho ou julho, e a lua estava cheia, ou quase, e iluminava os topos das árvores do parque.

Entramos. Passamos o portão, os três carros. Andamos muito, quase um quilômetro. Espero ver um castelo no fim daquela estrada, e de fato a casa era quase um castelo. Neocolonial, cercada de jardins formais, com uma piscina grande na parte dos fundos, depois vi, lembrava um pouco o antigo Solar do Monjope, já demolido, em frente ao Parque Lage, o Monjope, cenário de Terra em Transe.

Era enorme. Paramos em frente da casa, onde existiam uns janelões quase se abrindo para os jardins formais, debaixo de uma balaustrada, de um balcão se debruçando sobre os jardins. A entrada era pelo lado, através de uma porte cochère; era um portal imenso, com duas folhas. De um dos carros de trás vinha andando depressa o filho dos donos da casa, trintão, meio careca apesar de ainda moço, com uma penca de chaves. Estamos esperando na porta do casarão, eu, o Beto, o aviador que morava em São Conrado, um rapaz que não conhecia, e três moças (tinham ficado quietas toda a viagem), de microssaias, isso mesmo, sainhas meio rodadas mas ultracurtas, sapatos de salto tacão, como se usava naquela época, meias de nylon, caras até que bonitinhas, mas que não combinavam nada com aquela casa.

O filho dos donos da casa luta com as chaves, abre a porta. Entramos, um hall de mármore, grande; uma porta em arco abrindo-se para um salão de pé direito muito alto, tudo branco, neocolonial, o dos janelões e, no fundo, uma escadaria para o andar de cima. O dono avisa: não quero zona no quarto da minha irmã, fica aqui em cima, e aponta na direção da balaustrada sobre o jardim.

No fundo do salão um bar americano, tipo anos 50, móveis de pé de palito, bem cenário de filme da Atlântida, ou de história em quadrinhos, das primeiras, de Mickey Mouse. Um equipamento de som ao lado, ultra-espetacular, com altofalantes eletrostáticos.

Os dez ou doze casais enchem logo o salão. O dono da casa, Carlinhos, coloca duas ou três garrafas de uísque bom em cima do bar, e copos e dois baldes de gelo. E umas comidinhas, biscoitinhos salgados.

Mas estou distraído com os quadros nas paredes. Tinha uma paisagem de Antonio Parreiras; dois retratos, um homem e uma mulher, de Rodolfo Chambelland, e um óleo pequeno que me parecia Portinari, embora sem assinatura. Tudo iluminado com luzinha em cima (o homem e a mulher retratados por Chambelland, depois perguntei, eram os avós do Carlinhos).

Tenho que arranjar companheira, ou vou sobrar. Perto de mim uma moça moreninha no uniforme de todas, microssaia e sandália de tacão. Tem música, a gente dança. No meio da sala a mesa baixa inevitável, e uma das moças sobe ali e começa um strip — parece que mesa de centro de sala é como queijo de inferninho, mulher tem que subir lá e tem que fazer strip.

O ambiente é estranho; meio dissonante. Os casais se pegam, uns somem nos quartos (menos no quarto da irmã do Carlinhos, isso todo mundo respeitava, até porque ele lembrava a proibição de tempos em tempos), outros vão se guentando nos sofás da sala.

Até que o aviador de São Conrado, o piloto da Panair começa a falar. Fala baixo, mas as pessoas ouvem sua voz, mesmo que envolvidas nas transas de cada um. Fala da amargura da sua vida, da mulher que largou ele, dos filhos que queria ter tido, dos fracassos pequenos de seu dia a dia. Fracassos dolorosos porque medíocres. Infelicidades pequenas. Fala em voz baixa, desanimada. Fala como no refrão de A Canção da Terra, de Mahler, dunkel ist das Leben ist der Tod. Negra é a vida, negra é a morte.

Já tendo completado minhas atividades ali com uma daquelas meninas, ouço o aviador na sua fala insistente, fala de profeta. E vejo ao fundo, ao som da voz do aviador, uma cena erótica desesperada: um carinha sentado no sofá, uma moça com a cabeça no seu colo, alongada no mesmo sofá. Agarrava-se no corpo do rapaz, fazia um vai-e-vem furioso e sem fim com a cabeça, e o rapaz estremecia como se doente de dança de São Guido.

(De relance, agora, num flash de memória, uma cena semelhante. Ipanema, de tarde, tarde de outono, meio friozinha, chuvosa, no quarto de um apartamento dos anos 40 que ficava numa das ruas transversais cheias de árvores; este, o cenário. A namorada se aplica em trabalhos manuais e orais no namorado, que geme baixinho. A música de fundo era mais adequada, melhor que as lamentationes, os threni, do aviador — era Guiomar Novais tocando o concerto em lá menor de Schumann, o concerto de onde foi chuchada Besame mucho.)

E o aviador sempre falando do negrume da vida e do negrume da morte.

Cinco da manhã, surgia a filha da manhã, dos dedos de rosa a aurora. Vou até a balaustrada que dava para o quarto da irmã do Carlinhos ver o nascer do Sol. O parque da casa era imenso; como que continuava num mar de árvores até o horizonte, ao fundo, a Pedra da Gávea, os morros da Floresta da Tijuca. Carlinhos vai lá me pegar, reclamando, pois o quarto da irmã era off limits. Digo, estou só vendo o jardim.

Diz, tá na hora de ir embora. Não quero que o caseiro nos encontre; ele abre a casa às oito.

Deixo rhododáktulos eós, dos dedos de rosa a aurora, para trás. E também a negritude da vida do nosso bom aviador.