sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

1968, X: A Décima Sinfonia de Mahler como metáfora para a década

A Décima Sinfonia de Mahler, mesmo nos rascunhos, tem cinco movimentos: Adagio, Scherzo I, Purgatorio, Scherzo II, Adagio-Finale. Os movimento extremos duram cerca de vinte e cinco minutos, quase meia hora, se os regentes esticam o andamento lento. Cada um dos scherzi dura dez minutos, e o Purgatorio é um episódio-brincadeira, de três minutos, como a Badinerie de Bach; o Scherzo II é uma dança feroz, e Mahler escreveu à margem de seu manuscrito, der Teufel tänzt mit mir, o diabo dança comigo.

A década de 60 nos trouxe muitas surpresas, muito inesperado: surpresas políticas, como o assassinato de Kennedy, a Primavera de Praga, a revolta estudantil nos EUA contra a guerra do Vietnam (que só iria escalar mesmo a partir de 1963, com o assassinato do ditador Ngo Dinh Diem), as revoltas estudantis na Europa, o início da ditadura militar no Brasil, a explosão de movimentos culturais alternativos, da ecologia aos hippies, a liberação sexual. Mas nada disso se percebia em 1960, quando Eisenhower passa a Kennedy a presidência dos EUA, e aqui no Brasil Jânio sucede a Juscelino, na primeira transmissão de poder realizando-se em Brasília.

Algo como a Décima Sinfonia: até 1960, dela conhecíamos o Adagio inicial, e os três minutos do Purgatorio. Nada mais. Até que Deryck Cooke nos apresenta sua “performing version,” justo em 1960, e Ormandy grava-a em 1965. Foi como, talvez, a sensação de estarmos vendo um filme em preto e branco, na telinha quadrada do cinema de antigamente, e de repente o écran se enche, e o filme passa a ser colorido e em cinemascope. Colorido e nos envolvendo completamente, nos arrebatando.

Não quero saber se a Décima é Mahler ou não, se é uma versão “autêntica” ou “fiel.” Soa como Mahler, é tudo. E é grandiosa, derramadamente romântica, ao jeito do ultra-romantismo que vai chegando na atonalidade (pois a atonalidade, em música, é o limite extremo do romantismo). E' metáfora perfeita para a década de 60: de perspectivas estritas, somos jogados num turbilhão em cinemascope. E é a musique de scène perfeita, também, para a década.

Se eu a filmasse, à década de 60, tomaria a Décima Sinfonia de Mahler como música para tal filme.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

1968, IX: Intermezzo musicale — de Alma Mahler a Gustav Mahler

Dramatis personae: Gustav Mahler (1860-1911). Compositor austríaco, diretor da Ópera de Viena por dez anos, até 1908, compôs dez sinfonias (a décima, inacabada), e ciclos orquestrais de canções, entre os quais Das Lied von der Erde (A Canção da Terra). Suas obras, num estilo ultra-romântico, antecipam ainda muito da música de Schönberg e Alban Berg; Das Lied von der Erde é considerada a mais perfeita orquestração da história da música.

Alma Maria Schindler Mahler Werfel (1879-1964). Sua mulher, filha do pintor vienense Emil Schindler, foi, sucessivamente, amante de Gustav Klimt, mulher de Mahler, amante e depois mulher do arquiteto Walter Gropius, criador do movimento Bauhaus, amante do pintor Oskar Kokoschka, e mulher do romancista Franz Werfel, que escreveu A Canção de Bernadette. De 1946 em diante viveu nos Estados Unidos, onde faleceu.

Alguém falou que a trilha sonora dos anos 60 foram os Beatles. Nada disso, a trilha sonora dos anos 60 foi a música de Gustav Mahler. Na verdade, os anos 60 começaram com Mahler, cujo centenário festejou-se em 7 de julho de 1960, com uma edição completa das sinfonias (exceto a Décima, um produto dos próprios 60, já conto) e apresentações públicas de suas obras, uma delas organizada por Leonard Bernstein.

Conto uma historinha. Em 1960 mesmo, numa festa em Nova York, com uma porção de gente de teatro, músicos, alguns artistas de cinema, a porta do apartamento, granfiníssimo, se abre, e deixa entrar na festa uma matrona impressionante. Alta, corpulenta, idosa mas posuda, com um chapelão daqueles de abas muito largas, um vestidão até os pés, e colares de pérolas à volta de seu pescoço. Avança decidida até o meio do salão, vê alguém, pára, e começa uma conversa fantástica com um dos convidados:

— Ahh! You are a bearrrrded man! You arrre an arrrtist! (rrr: ela rrrrolava os erres fortemente). You arrre an arrrtist!, insistia.

(De fato, o interlocutor da velha senhora, da alte Dame, tinha uma barbichinha: era, parece, Alan Jay Lerner, autor de My Fair Lady.) Responde à temível, deinótica figura: Yes, I'm an artist. Ela tem o rosto iluminado por um sorriso total, e continua:

— Perrrrhaps you arrre a wrrriter (dizia: vrriter) like my husband Mrrr Werrrfel!

— No, I'm not a writer.

— Ahhh, you arrre an arrrchitect, like my husband Mrrr Gropius!

— No, I'm not an architect.

— Then, you arre a painterrr like my husband Mrrr Kokoschka!

— No, ma'am, I'm not a painter.

— Ohh, then you arrre a musician, like my husband Misterrr Mahler!

Vocês acabam de ser apresentados a Alma Maria Schindler Mahler Werfel. (Foi uma testemunha do encontro que me contou; não fui eu, tinha só quatorze anos nessa época.)

Já contei o que se segue, mas conto de novo agora. Em outubro de 1910 estão em Munique vovó, vovô, e os bisavós Moraes, M le Maréchal et Mme la Maréchale Mendes de Moraes. Vovó me disse que ouviu então comentários na cidade sobre a estréia mundial de uma sinfonia de um certo compositor austríaco cujo nome ela nunca havia escutado. Vovó pergunta ao concierge do hotel se valia a pena assistir ao espetáculo. Responde o infeliz: vai ser um espetáculo circense; não vale a pena ir.

E assim vovó deixou de assistir à estréia mundial da Oitava Sinfonia de Mahler, a Sinfonie der Tausend, Sinfonia dos Mil. (Isso me contou ela no hall do andar do meio da Casa da Vovó, em frente à mesa que estava sempre coberta com revistas velhas, sentada na poltrona com uma arca junto da parede do banheiro, do outro lado das portas para seus apartamentos privados.)

Li pela primeira vez sobre a Oitava Sinfonia de Mahler na Pequena Enciclopédia de Conhecimentos Gerais, traduzida e aumentada pelo Almir de Andrade: dizia, numa nota ao pé da página, que embora sinfonias de Mozart e Haydn durem quinze, vinte minutos, a Oitava Sinfonia de Mahler durava mais de uma hora. Associei na hora, na minha cabeça, aquele nome, Gustav Mahler, a uma figura rotunda e solene, e me espantei ao ver tempos depois o desenho de Orlik, o retrato de Mahler em perfil, rosto magro, nariz afilado; nada rotundo.

Ouvi pela primeira vez a Oitava Sinfonia em 1960, num dos vesperais sinfônicos da rádio Mec (não existem mais, e nem a ópera das 5 da tarde dos domingos; lá, agora, na Rádio Mec, só dá samba). Me ficou uma idéia confusa, dissonante, da sinfonia; era a gravação de Eduard Flipse, com a Sinfônica de Rotterdam, e mais de mil executantes, sim. Comprei essa mesma gravação uns dois anos depois. Papai odiava; mamãe, sem ouvido musical, era-lhe indiferente. Em 1964 comprei Das Lied von der Erde, na gravação regida por Hans Rosbaud; é, em minha opinião, a obra-prima de Mahler, e a orquestração mais perfeita que jamais se fez.

Para desespero de papai e mamãe, comecei então a colecionar álbuns das sinfonias de Mahler. Depois de Das Lied von der Erde e da gravação Flipse da Oitava Sinfonia, arranjei num sebo de discos uma gravação, começos dos anos 50, da Primeira Sinfonia, Titan. Uma pessoa amiga viajou aos Estados Unidos — e dei um jeito para que me trouxesse a versão Bruno Walter da Segunda Sinfonia, Ressurreição.

Entra o ano de 1965. Algum tempo antes havia lido, no Time, sobre uma apresentação ultra-secreta, em Nova York, de uma fita na qual havia sido gravada, quase completa, Décima Sinfonia, que, pelo que sabia, Mahler deixara inacabada. Entra o ano de 1965, e alguns amigos meus fundam, num casarão de Botafogo, uma agência de publicidade toda cheia de idéias novas, e onde vai trabalhar um amigo meu, grande fotógrafo (já conto sobre ele) — e com gente maravilhosa entrando e saindo da casa, todos os dias, a toda hora. Um dos sócios da agência era cheio do dinheiro, mas, como uma espécie de precursor da informalidade tipo Silicon Valley, à Steve Jobs, só andava de calça jeans branca e camisa social de mangas arregaçadas e com metade dos botões abertos. E ainda por cima era casado com uma sobrinha-neta da Marie que é um dos personagens de The Waste Land, de Eliot.

(Como traduzir The Waste Land ? Já vi muita tradução disparatada; literalmente é, O Deserto. Mas dizer que é O Deserto é tradução que deixa de lado as muitas referências à volta do nome do poema. Uma: épos ebôon en aórati, a voz que ecoa na desolação, uma referência a passagem num dos evangelhos. Outra: Der Rufer in der Wüste. Mesma coisa traduzida: o que chama no deserto — mas, no caso, é o nome que Mahler deu às passagens tocadas nas trompas, soando bem longe, no começo do Finale de sua Segunda Sinfonia; também uma referência, insisto, à mesma passagem do Novo Testamento. Portanto, traduzir o nome do poema de Eliot é insensatez. Ou seja: para mim, The Waste Land é The Waste Land e pronto.)

Um dia apareço no casarão da agência de publicidade com o The Grammophone, edição de meados de 1965. Queria uma cópia de uma resenha de disco, a resenha da gravação que Ormandy havia feito da Décima de Mahler, versão Deryck Cooke. Xerox não existia, de modo que pedi a meu amigo fotógrafo, Edson Cláudio, que me fotografasse aquelas duas páginas onde se diziam maravilhas da Décima. Alguns meses depois consegui que a empresa do pai de outro amigo me importasse, no meio de uma encomenda de parafusos, pregos, e lataria para qualquer dispositivo industrial, o álbum de Ormandy. Vou na casa deste amigo, ele está na sala de visitas, junto do equipamento de som, com o álbum de bolachas grandalhão, ainda envolvido no papel celofane original, a capa um enorme desenho Art Nouveau. Abrimos, colocamos o disco, e curtimos a hora e vinte de música fantástica, terminando no Adagio de quase meia hora, com a melodia bittersüß, amara e doce, daquele finale que se evai num glissando (hoje) famoso das cordas.

O músico dos anos 60 foi Gustav Mahler. A música dos anos 60 foi, sobretudo, essa Décima Sinfonia de Mahler, uma sinfonia inexistente, porque Mahler não a concluiu, e que no entanto é uma de suas maiores obras. Concordo que em 1967 teve Sgt Peppers, dos Beatles, e o começo do rock sinfônico; logo depois On Her Satanic Majesty's Request, dos Stones, interessante mas um epifenômeno de Sgt Peppers. Tudo bem.

Mas a música dos anos 60, a música-síntese dos anos 60 foi a música de Mahler. Que começa a década como um compositor marginal, e a termina como uma das figuras centrais do repertório. E a melhor síntese (e vou explorar isso) é esta sinfonia inacabada, concluída pelo trabalho de um musicólogo, Deryck Cooke, a Décima Sinfonia.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

1968, VIII: 28 de março de 1968 — o ano começa

1968 começou em 28 de março, 28 de março de 1968.

Lembro de ter chegado em casa às 6 da tarde. Não sei se vinha da cidade — creio que não, não voltava de meu trabalho. Voltava da escola, a antiga Escola Nacional de Química, onde estava cursando o quinto e último ano. Mamãe, muito nervosa, me olhou, disse o óbvio, graças a Deus você chegou! Contou o que tinha acontecido, então: houve uma manifestação de estudantes no restaurante do Calabouço, a polícia militar tinha invadido o restaurante e, segundo ela, vários estudantes morreram. A cidade estava ocupada pela PM, carros correndo com sirene aberta pra cima e pra baixo, estudantes fazendo manifestações e fugindo da polícia, notícias sobre estado de sítio na bica de ser decretado.

Ligamos o rádio. O que o rádio dizia era: um estudante fora morto, Nelson Luiz ou Edson Luiz. (O nome certo era: Edson Luiz de Lima Souto, de 18 anos recém-feitos.) Vários outros haviam sido baleados. A polícia tinha invadido o restaurante “porque havia uma manifestação subversiva,” ou jargão equivalente, programada para o local. Alguém jogou uma garrafa — talvez não tenha sido uma garrafa, pode ter sido mesmo um pedaço de pão atirado na polícia. Mas jogaram qualquer coisa nos policiais, e e estes mandaram bala contra todo mundo. Morreu o rapaz, que nem universitário era, era um secundarista pobre que morava ali perto e costumava comer no restaurante do Calabouço.

O Rio, nos anos 50 e 60, estava cheio de restaurantes universitários. Eram bons e baratos; comi muito neles. Você pingava umas moedinhas num guichê de entrada, passava uma roleta, pegava um bandejão de aço com seis cumbucas para botar comida, e ia para a fila. Os cozinheiros te serviam: feijão, arroz, sopa às vezes, legumes, carne, ou frango, ou peixe — peixe nas sextas-feiras, um feijão mais incrementado, com linguiça, toucinho e carne seca, que eles chamavam de feijoada, nas quartas. Era baratíssimo, e a comida era bem boazinha. Acho que faziam parte da rede do SAPS (não me perguntem o significado da sigla; nunca soube; deve ser serviço de alimentação popular saudável, coisa assim). Lembro de uma carne seca com abóbora deliciosa que eles serviam.

Eram bons esses restaurantes. Tinha dois na universidade, então Universidade do Brasil, na Praia Vermelha, um que chamavam “o Pentágono” no parque da universidade, na Avenida Pasteur. (Não sei o motivo do nome.) O outro, junto da Faculdade de Medicina, bem perto de onde era antigamente a Faculdade de Arquitetura, quase na praça junto da Praia Vermelha. Na cidade havia mais três, que me lembre, o do Calabouço, o da Escola de Engenharia, no Largo de S. Francisco, e um servindo à Faculdade de Direito, no Campo de Santana.

Comida barata onde muita gente comia, além dos estudantes, porque não havia muita fiscalização na entrada, ou porque sempre se dava um jeitinho de entrar mais um.

E, como a comida era barata de propósito, os restaurantes eram deficitários. Aí vinha a turma dos economistas fiscalistas, monetaristas, reclamando que serviços como aqueles, dos restaurantes estudantis, eram causa do déficit público, et caterva. Mesmo papo, há quarenta, cinquenta anos. Logo, e sobretudo depois de 64, tinha manifestação quase todo dia nos restaurantes. E algum imbecil desastrado, naquele dia, deu a ordem de se invadir o restaurante do Calabouço, e um rapaz que nem universitário era sai morto no tiroteio.

A página do Tortura Nunca Mais na web conta o que houve depois, e acrescento o que lembro. A polícia, assustada com a extensão da estupidez, foi logo embora. O corpo do menino, nem sabiam direito o nome dele, por isso é que circulou o nome Nelson Luiz em vez de Edson Luiz, foi levado para a Assembléia Legislativa, que ficava ali na Cinelândia, onde é agora a câmara de vereadores. Lembro muito bem da foto: o corpo foi colocado na bancada da mesa diretora, em cima da bancada, diante do plenário, e à volta apareciam estudantes, os legistas, alguns políticos. A necrópsia foi feita ali: quem deu detalhes, a Margô, minha mulher, e a mim, foi o secretário de saúde da Guanabara àquele tempo, Hildebrando Marinho, grande amigo e grande médico. A emoção de todos era gigantesca; Marinho convidou os acadêmicos de medicina presentes para testemunharem a necrópsia. Muitos choravam desesperadamente.

Foi a primeira vítima da repressão que ia levar ao Ato 5, no fim do ano. Virou ícone. Que me lembre, o enterro, no Cemitério S. João Baptista, foi tenso, mas sem incidentes. Uma semana depois, no entanto, na missa de sétimo dia, a polícia mandou um batalhão a cavalo cercar a igreja da Candelária, onde ia acontecer a missa, e existe uma foto na qual se vêem policiais a cavalo tentando entrar, invadir a igreja. Cena medieval para Arnaud-Amaury, ou Simon de Montfort nenhum botar defeito.

(Esclareço a citação implícita. Em 1209 o papa Inocêncio III, Lorenzo Conti, um fanático perverso, decretou uma cruzada contra os cátaros. Em 22 de julho de 1209, Arnaud-Amaury, legado papal e preposto de Inocêncio, cercou Béziers, no Languedoc, e ordenou a morte de todos que lá se achavam encurralados, inclusive os que se haviam abrigado numa igreja, dizendo, mate-os todos; Deus vai saber separar os seus. Em 1968, vendo os cavalarianos tentando invadir a igreja da Candelária, fiquei só com raiva e indignação; hoje, lembro também daquele episódio canalha protagonizado pelo legado de Inocêncio III.)