sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

1968, VIII: 28 de março de 1968 — o ano começa

1968 começou em 28 de março, 28 de março de 1968.

Lembro de ter chegado em casa às 6 da tarde. Não sei se vinha da cidade — creio que não, não voltava de meu trabalho. Voltava da escola, a antiga Escola Nacional de Química, onde estava cursando o quinto e último ano. Mamãe, muito nervosa, me olhou, disse o óbvio, graças a Deus você chegou! Contou o que tinha acontecido, então: houve uma manifestação de estudantes no restaurante do Calabouço, a polícia militar tinha invadido o restaurante e, segundo ela, vários estudantes morreram. A cidade estava ocupada pela PM, carros correndo com sirene aberta pra cima e pra baixo, estudantes fazendo manifestações e fugindo da polícia, notícias sobre estado de sítio na bica de ser decretado.

Ligamos o rádio. O que o rádio dizia era: um estudante fora morto, Nelson Luiz ou Edson Luiz. (O nome certo era: Edson Luiz de Lima Souto, de 18 anos recém-feitos.) Vários outros haviam sido baleados. A polícia tinha invadido o restaurante “porque havia uma manifestação subversiva,” ou jargão equivalente, programada para o local. Alguém jogou uma garrafa — talvez não tenha sido uma garrafa, pode ter sido mesmo um pedaço de pão atirado na polícia. Mas jogaram qualquer coisa nos policiais, e e estes mandaram bala contra todo mundo. Morreu o rapaz, que nem universitário era, era um secundarista pobre que morava ali perto e costumava comer no restaurante do Calabouço.

O Rio, nos anos 50 e 60, estava cheio de restaurantes universitários. Eram bons e baratos; comi muito neles. Você pingava umas moedinhas num guichê de entrada, passava uma roleta, pegava um bandejão de aço com seis cumbucas para botar comida, e ia para a fila. Os cozinheiros te serviam: feijão, arroz, sopa às vezes, legumes, carne, ou frango, ou peixe — peixe nas sextas-feiras, um feijão mais incrementado, com linguiça, toucinho e carne seca, que eles chamavam de feijoada, nas quartas. Era baratíssimo, e a comida era bem boazinha. Acho que faziam parte da rede do SAPS (não me perguntem o significado da sigla; nunca soube; deve ser serviço de alimentação popular saudável, coisa assim). Lembro de uma carne seca com abóbora deliciosa que eles serviam.

Eram bons esses restaurantes. Tinha dois na universidade, então Universidade do Brasil, na Praia Vermelha, um que chamavam “o Pentágono” no parque da universidade, na Avenida Pasteur. (Não sei o motivo do nome.) O outro, junto da Faculdade de Medicina, bem perto de onde era antigamente a Faculdade de Arquitetura, quase na praça junto da Praia Vermelha. Na cidade havia mais três, que me lembre, o do Calabouço, o da Escola de Engenharia, no Largo de S. Francisco, e um servindo à Faculdade de Direito, no Campo de Santana.

Comida barata onde muita gente comia, além dos estudantes, porque não havia muita fiscalização na entrada, ou porque sempre se dava um jeitinho de entrar mais um.

E, como a comida era barata de propósito, os restaurantes eram deficitários. Aí vinha a turma dos economistas fiscalistas, monetaristas, reclamando que serviços como aqueles, dos restaurantes estudantis, eram causa do déficit público, et caterva. Mesmo papo, há quarenta, cinquenta anos. Logo, e sobretudo depois de 64, tinha manifestação quase todo dia nos restaurantes. E algum imbecil desastrado, naquele dia, deu a ordem de se invadir o restaurante do Calabouço, e um rapaz que nem universitário era sai morto no tiroteio.

A página do Tortura Nunca Mais na web conta o que houve depois, e acrescento o que lembro. A polícia, assustada com a extensão da estupidez, foi logo embora. O corpo do menino, nem sabiam direito o nome dele, por isso é que circulou o nome Nelson Luiz em vez de Edson Luiz, foi levado para a Assembléia Legislativa, que ficava ali na Cinelândia, onde é agora a câmara de vereadores. Lembro muito bem da foto: o corpo foi colocado na bancada da mesa diretora, em cima da bancada, diante do plenário, e à volta apareciam estudantes, os legistas, alguns políticos. A necrópsia foi feita ali: quem deu detalhes, a Margô, minha mulher, e a mim, foi o secretário de saúde da Guanabara àquele tempo, Hildebrando Marinho, grande amigo e grande médico. A emoção de todos era gigantesca; Marinho convidou os acadêmicos de medicina presentes para testemunharem a necrópsia. Muitos choravam desesperadamente.

Foi a primeira vítima da repressão que ia levar ao Ato 5, no fim do ano. Virou ícone. Que me lembre, o enterro, no Cemitério S. João Baptista, foi tenso, mas sem incidentes. Uma semana depois, no entanto, na missa de sétimo dia, a polícia mandou um batalhão a cavalo cercar a igreja da Candelária, onde ia acontecer a missa, e existe uma foto na qual se vêem policiais a cavalo tentando entrar, invadir a igreja. Cena medieval para Arnaud-Amaury, ou Simon de Montfort nenhum botar defeito.

(Esclareço a citação implícita. Em 1209 o papa Inocêncio III, Lorenzo Conti, um fanático perverso, decretou uma cruzada contra os cátaros. Em 22 de julho de 1209, Arnaud-Amaury, legado papal e preposto de Inocêncio, cercou Béziers, no Languedoc, e ordenou a morte de todos que lá se achavam encurralados, inclusive os que se haviam abrigado numa igreja, dizendo, mate-os todos; Deus vai saber separar os seus. Em 1968, vendo os cavalarianos tentando invadir a igreja da Candelária, fiquei só com raiva e indignação; hoje, lembro também daquele episódio canalha protagonizado pelo legado de Inocêncio III.)

5 comentários:

Ricardo C. disse...

Não sei dos demais, mas o meu silêncio em alguns capítulos anteriores foi reflexivo e sobretudo respeitoso, daqueles silêncios de quem está prestando uma atenção danada e não quer atrapalhar a conversa!

Giancarlo Zeni disse...

D'accord! Ansioso por mais.

Francisco Antonio Doria disse...

Vai ter mais. Estou pensando como continuar. Tem três coisas: virei teórico marxista, no Correio da Manhã. Testemunhei toda a organização da passeata dos cem mil. E vou ter que falar sobre algo que vinha de antes, os hippies e a liberação sexual.

Unknown disse...

bonjour monsieur dorià !! me voici de retour de vacances, pour constater que votre blog est vraiment hype et agreable, the place to be ! j'étais trop petite pour vivre mai 68, mais je connais l'histoire par coeur : quelques jours qui ont changé le monde ! à l'époque internet n'existait pas, mais les jeunes de la plupart de "l'occident" ont décidé "qu'il était interdit d'interdire", presque en meme temps, comme si un rv avait ete pris!

à part ça, comment allez vous ? vous savez qu'à cause de vous, je me suis retrouvée dans des situations pour le moins exotiques ? genre, buvant de la caipirinha au kiosque d'une plage de salvador et lisant passionnement "du coté de chez swann"...j'étais prise par une snob, certains me regardaient avec
circonspection : c'est quoi cette idiote voulant nous faire croire qu'elle lit proust en français en pleine plage ? hahahahaha
en fait, je relisais, pour pouvoir en discuter avec vous, de combray,de geneviève de brabant,des madeleines trempées dans de la camomille....
bonne journée à vous !

Unknown disse...

Proust à la plage? Balbec?