terça-feira, 24 de novembro de 2009

Dr. Cristóvão da Costa: marranos, Lucenas e Costas

Filiar como havia feito antes o Dr. Cristóvão da Costa nos Costas algarvios (e dele a biografia já explicito) foi um erro meu. Coloquei-o — com base na interpretação errada de um documento — como filho de Afonso da Costa, alcaide de Lagos. Não o foi. O Dr. Cristóvão da Costa foi filho do Dr. mestre Afonso, físico mor (uma espécie de ministro da saúde) de Portugal e catedrático de física do studium generale de Lisboa, depois de 1499.

Leio, num artigo de Iria Gonçalves, “Físicos e cirurgiões quatrocentistas,” que cerca de 2/3 dos médicos (físicos) e cirurgiões desse período em Portugal eram judeus ou marranos. Era, com certeza, este o caso do Dr. mestre Afonso. E agora conto a história de sua gente.

Notemos de início o status muito alto de sua família, no estamento burocrático português: o Dr. mestre Afonso chega a físico mor (parênteses: não me habituo a escrever fisicomor, como o exige esta infame nova ortografia), e seu filho o Dr. Cristóvão da Costa será reitor da universidade em 1526, desembargador em 1521, e chanceler-mor depois de 1530. Pois encontro, no artigo de Iria Gonçalves, em 2.12.1456, um mestre Afonso que recebe carta de cirurgião. Na carta nota-se que é sobrinho de mestre Rodrigo, cirurgião do infante D. João. Penso que neste cirurgião diplomado em 1456 começa esta minha história.

Em Anselmo Braamcamp Freire leio (baseia-se em parte em Alão de Moraes) sobre os três irmãos Lucenas: o Dr. Vasco Fernandes de Lucena, sobre quem já falo; o Dr. mestre Rodrigo de Lucena, físico mor do reino até 1499 ou pouco depois, e o mestre Afonso, que Braamcamp Freire identifica ao “físico da infanta,” embora não saiba eu que infanta o era.

O Dr. Vasco Fernandes de Lucena é formidando personagem. Amarranado na origem, segundo Alão, seria seu pai certo Fernão Vaz ignoto, irmão presumido do mestre Rodrigo que se documenta. Fernão Vaz está em Felgueiras Gayo (sim, sim, sei das desconfianças com o que diz Gayo, mas este nome reaparece nas gerações futuras, e faz pendant com Vasco Fernandes). Imagino este Fernão Vaz como um marrano de primeira geração, nascido nos últimos anos do século XIV, rico e muito bem educado, porque tiveram alta educação seus filhos. E bem sucedidos o foram. Em 20.4.1487, numa sentença, o Dr. Vasco Fernandes de Lucena dá-se os títulos de — “do conselho e desembargo de el Rei, conde palatino e cronista-mor do reino.” O título de conde palatino ter-lhe-ia sido concedido pelo papa Inocêncio VIII Cybò em 1485 quando o Dr. Vasco a este se apresentou como embaixador de Portugal. Braamcamp despreza o título, dizendo que nada valia — mas na Itália era muito apreciado, e ecoava os comites stabuli etc que vinham do tempo dos romanos.

Desembargador, cronista mor, embaixador e conde palatino. Notável indivíduo. Seu irmão o Dr. mestre Rodrigo de Lucena é físico mor do reino até pelo menos 1499, e a ele sucede como físico mor o Dr. mestre Afonso, nomeado em 1499 para a cátedra portuguesa de física. Pois nisso, e no alto status, no estamento burocrático português, de seu filho o Dr. Cristóvão da Costa, me baseio para identificar o “mestre Afonso” irmão dos dois Lucenas, Vasco e Rodrigo, ao Dr. mestre Afonso que passa a físico mor do reino em 1499.

Eram, de fato, altos personagens. O Dr. Cristóvão da Costa nasce por volta de 1485 — seu pai já teria então mais de 50 anos, presumo. Estuda cânones em Salamanca, e é admitido no studium generale de Lisboa em começos de 1512 como bacharel. Doutora-se em cânones em Siena em 1518; volta a Portugal e em 19.9.1520 é nomeado desembargador da casa do cível por D. Manuel, com 2 mil reais de mantimentos por ano (recebe outros emolumentos, ainda, e vultosos). Depois de 1530 é chanceler da relação, posição que é a terceira mais alta do reino.

Numa carta de brasão passada a um seu descendente em 14.7.1603, falam do parentesco destes aos Costas do Armeiro-Mor, de D. Duarte da Costa, governador geral do Brasil até 1556. Aparece na descendência do Dr. Cristóvão da Costa o nome “Pedro Homem da Costa,” que ocorre pela primeira vez nos Algarves em começos do século XV. Esses marranos de alta hierarquia, Damião Dias, Diogo de Crasto do Rio, o próprio Dr. Vasco Fernandes de Lucena, costumavam casar com mulheres nobres, de nobreza notável, ou seus descendentes — o próprio Dr. Vasco teve por mulher a uma Azevedo, dos Azevedos antigos; Damião Dias, a uma Meneses. Assim, é possível que o Dr. mestre Afonso tenha tido por mulher uma Costa de nobreza explícita, e este sobrenome da mulher será o que repassa aos descendentes.

O filho do Dr. Cristóvão da Costa, Fernão Vaz da Costa — nome que herdou do avô materno, o desembargador Dr. Fernão Vaz de Caminha (sim, seria sobrinho neto de Pero Vaz, o cronista) — nasce por volta de 1520 e morre em 1565 ou 1566. Vem para o Brasil com Tomé de Sousa, em 1549, largando em Portugal o morgadio constituído pelo avô materno, e aqui se casa com Clemenza Doria, bastarda do banqueiro genovês Aleramo Doria. E começam minha família, os Costas Dorias.

O nome “Fernão Vaz” vem-lhe, e aos demais Fernãos Vaz sucessivos, que os houve quatro, nos séculos XVI e XVII, na Bahia, do desembargador Caminha, que o teve do avô materno, clérigo de missa e luxurioso como todos que tais, no século XV. Mas — pode ser que o presumido bisavô, o Fernão Vaz marrano, tenha tambem contado para que este fosse o nome de meu antepassado, e dos seus descendentes, na linha que usava alternadamente os nomes Vaz da Costa e Sá Doria. E ainda há quinze anos vivia em Salvador, já idoso, um primo, Fernão da Costa Doria. Que exibia este prenome familiar obsessivo, desde o século XV, talvez mesmo o século XIV...

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