terça-feira, 18 de março de 2008

1968, XI - Uma festa contínua

Óbvio que é uma idealização, agora, a quarenta e tantos anos de distância, mas é como se a década de 60 do século XX tivesse sido do mesmo jeito que a Idade Média de Huizinga: muito mais colorida e rica de acontecimentos do que os tempos de hoje.

A frase de Huizinga, no começo de O Declínio da Idade Média, precisa ser citada para que possa fazer dela uma paráfrase ou uma variação que a tome como tema: quando o mundo era cinco séculos mais jovem, os acontecimentos da vida se destacavam com os contornos muito marcados. Da infelicidade à felicidade, a distância parecia muito maior; toda experiência ainda possuía esse caráter imediato e absoluto que têm o prazer e o sofrimento para o espírito de uma criança.

Nos anos 60 do século passado, era como se a gente estivesse descobrindo cores e sabores, sons e imagens novas. A roupa dos anos 50 era de uma cor só: cinza, cinza claro, cinza escuro. Uma vez, eu pequeno, me colocam uma camiseta que dizem ser escandalosa, fantasia para um baile de carnaval infantil em Petrópolis. Era uma camiseta de gola canoa, branca, listada na horizontal com fios fininhos vermelhos. De longe, nem se percebiam aqueles fios fininhos — mas só sua existência virtual, quase imperceptível, fazia ser escandalosa a camiseta.

Dez anos depois dessa minha experiência com a camiseta-escândalo, estou no Aterro do Flamengo, tarde de muito sol, muita luz. E' 1966, um sábado, e participo de um happening, acho que o primeiro dos happenings que vão acontecer no Rio. Hélio Oiticica, Ligia Pape, Frederico Morais teorizando e gesticulando com as mãos, como se fosse um maestro e estivesse regendo aquela orquestra de artistas plásticos. Toda vestida de rosa-abóbora, Georgiana Russell, filha de Sir John Russell, embaixador inglês. De mini-vestido Mary Quant, coloridíssimo, Georgiana pulava de artista em artista, quase como se estivesse dançando.

Não era a única a estar vestida com cores muito fortes. Ligia Pape, com seu cabelo liso, preto preto, lembrando o corte de Vidal Sassoon para Peggy Moffitt, estava com um vestido dividido em espaços verde-intenso e branco. São as imagens que me ficaram. Cor forte, muita luz, figuras nítidas, intensas. Estava ali com um amigo, o Tixo, ótimo artista plástico — ainda tenho em casa alguns desenhos dele, o Tixo vestido seja com parangolés do Oiticica, seja com sua própria versão do parangolé, uma jibóia enorme de plástico, com quase cinco metros de comprimento, que ele enrolava à volta do corpo de quem se dispusesse a servir de moldura ou soco para seu trabalho.

Lembro das festas, também. Daniel Tolipan dava uma festa que começava todo sábado ao meio-dia, e só terminava na madrugada de segunda-feira. Daniel tinha um apartamento enorme na esquina de Visconde de Albuquerque com Ataulfo de Paiva, finzão do Leblon. Servia um uísque espetacular, algumas comidinhas; de vez em quando as pessoas saíam, iam fazer uma boquinha num canto qualquer ali perto, e voltavam. Mas o bom da festa de fim de semana de Daniel eram as pessoas, claro. Já conhecia o Daniel de algum dos cantos do Rio, mas fui levado na casa dele por uma artista plástica, Regina Vater. Ficamos muito amigos, Daniel e eu. Outra festa contínua eram as dadas por Mário Fiorani, cineasta, gordão barrigudo, de barba branca, ou como ele dizia, em fantasia permanente de Papai Noel, barriga, barba grande, e saco cheio. Numa dessas festas do Fiorani vi, pela primeira vez, o que é mulher capaz de atrair machos em revoada: num canto estava uma moça de micro-saia, botas pretas altas, cabelo louro escorrido igual ao da Nico namorada do príncipe em La Dolce Vita, e, como disse uma amiga minha descrevendo caso semelhante, digo isso e dou a autoria porque a metonímia não é minha, toda cercada de testosterona por todos os quadrantes.

Não sei quem era a moça, não me lembro de tê-la visto de novo nalgum outro canto naqueles tempos, mas lembro também que andando sem rumo pelo apartamento do Mário (ficava num primeiro andar na esquina de Copacabana com República do Peru), entrei meio de inocente num quarto com a porta entreaberta, e vi um casal transando na cama do quarto. Em 1967 ainda não era comum, trepadas ao léu em festas.

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