quinta-feira, 20 de março de 2008

1968, XIII - A moveable feast, I

Era mesmo como se houvesse uma festa contínua, desde sempre, desde há muito. A movable feast, como na Paris dos anos 20 de Hemingway. Vou contar sobre algumas dessas festas que se juntavam na festa contínua de 66, 67, 68.

Uma primeira festa: me reencontro com um primo que não vejo há muito tempo, o Zé. Na Sucata, uma boate, boîte de nuit, ainda se dizia, discoteca; a Sucata ficava ali na Lagoa, perto da sede do Flamengo. De fora parecia pequena; dentro até que era bem grande. Escuro, luz negra, dentes brilhando na cara das pessoas, gim tônica brilhando feito fogo fátuo com a luz negra na mão de todo mundo. Estava com uma moça que tinha conhecido quando fiz uma conferência na universidade, e, de repente, enorme, grandalhão, vejo a figura do Zé-primo me abraçar e me agarrar, e nos levar para a mesa dele. No meio da música berrada me avisa que, na semana seguinte, sábado, ia oferecer um jantar; que eu fosse lá.

Fui, sozinho. O apartamento era grande, e ficava exato na Curva do Calombo, na Lagoa, segundo ou terceiro andar. Quando chego, já está cheio, lotadíssimo de gente. Tudo glitteratti, intelectuais e beautiful people. Me sinto Marcel chegando no primeiro jantar nos Guermantes, e sendo colocado logo ao lado da Princesse de Parme. No caso a Princesse de Parme do jantar do Zé é uma mulher muito bonita, muito elegante — e gentil comigo, que estou todo sem jeito, sou tímido até hoje, caindo ali meio de paraquedas. E' Helô Amado, mulher de Eurico Amado. A Princesa de Parma trata Marcel como um seu igual, apresenta-o ao filho, diz que devem se encontrar. Helô comenta que lê o que escrevo no Correio da Manhã, e pergunta se já publiquei algum livro. Seu interesse me surpreende, e me acalma. Não, não publiquei nenhum livro. Levanta-se, então, e busca João Ruy Medeiros, dono da José Álvaro Editor, e me apresenta a João Ruy.

Ainda não comi, anunciam um buffet frio, e vou para a mesa com João Ruy. Estou já meio zonzo, com o uísque e toda a imensa badalação da festa. A comida é fantástica: uma mousse de salmão (salmão era muito raro no Rio naquele tempo), salada fria de massas, algum caviar. Como até para evitar ficar de porre muito rápido, e volto a conversar com João Ruy. Me diz que havia lido tudo o que eu tinha escrito sobre Marcuse no Correio da Manhã, e me pergunta, você não quer escrever um volume sobre Marcuse para a coleção Vida e Obra?

Tô de porre: topo na hora. Vai ser meu primeiro livro — e foi.

Estamos em começos de setembro de 1968. A dois meses do ato 5. Mas ninguém ali pressente o desastre, o final que tudo aquilo vai ter. Ciro Kurtz, deputado estadual pelo MDB, membro do partidão, fala convicto e eloquente sobre o avanço das esquerdas e o recuo dos militares (lembro de sua mulher, muito bonita, discreta, ouvindo quieta o que o Ciro dizia). Fausto Wolff, enorme, lourão, berra feito um alucinado. Vem a comida quente, já quase meia-noite, ou talvez depois de meia-noite. Um tagliatelli al triplo burro. Mesmo sendo coisa simples, é delicioso. Na sobremesa, licores. Ou seja, tudo direitinho conforme o figurino.

Três da manhã, vou embora. Daniel Tolipan vai me dar uma carona no seu fusquinha vermelho.

Quando estou saindo, João Ruy me dá o cartão e marca um encontro comigo durante a semana para acertarmos os detalhes do livro. Descemos pelo elevador. Quando Daniel e eu saímos para o carro, parado do outro lado da rua, na calçada divisória, a gente vê Fausto Wolff meio debruçado para fora da balaustrada da varanda do apartamento, aos berros, Chicão, Daniel, não vão fazer besteira, não vão fazer bobagem!

Alguém puxa o Fausto para dentro antes que resolva dar uma de super-homem e se atirar lá de cima; entro no carro e luto para não adormecer, até Daniel me deixar em casa.

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