terça-feira, 18 de março de 2008

1968, XII - Intelectuais em revoada

No começo de março, um de meus professores, o Smil, me diz, Sergio Waissman, da Editora Delta, está precisando de um assessor para ajudá-lo a montar um projeto de financiamento de uma gráfica. Te recomendei. Vai se encontrar com o Sergio.

Me entrevistei com o Sergio na casa dele, em Ipanema, num sábado de manhã; estava tudo meio tumultuado porque havia nenem novo na casa, o primeiro filho dele e da mulher, aliás prima de um grande amigo meu da Escola de Química, onde estudávamos. Entrevista rápida, meia-hora, fui apresentado rapidinho ao bebê numa entrevista que demorou mais tempo, e, dois dias depois, segunda-feira, começo o trabalho.

O prédio da Editora Delta ficava na Travessa do Ouvidor, bem no centro do Rio, a cinquenta metros da Sete de Setembro. A sala do Sergio, onde eu trabalhava, era no terceiro andar, grudada ao setor de produção editorial, o setor divertido da casa, digamos assim. Meu trabalho era quase coisa de contabilista: preencher planilhas demonstrando custos e necessidades de financiamento para a gráfica que a Delta estava montando. A gráfica iria imprimir o Grande Dicionário Delta-Larousse, enciclopédia sendo escrita a dois passos de minha sala, na redacão do Projeto L3, nome em código do tal dicionário.

Era uma redação cheia de estrelas. No topo, Antonio Houaiss, magro, quase seco, falando baixo, voz e termos afiados como navalha Solingen, e gentil e sedutor como nunca vi ninguém. Junto dele, sempre, de terno meio destrambelhado, gago e com milhares de tiques, Carpeaux, Otto Maria Carpeaux. Ajudando o Carpeaux, sua versão brasileira, de óculos pretos de lentes estreitas, lentes muito grossas, Ismael Cardim, super-erudito. Na redação, preparando os verbetes, um bando de gente, entre os quais Ivan Junqueira e Luiz Costa Lima.

Me habituei a almoçar com o pessoal da redação do L3. Houaiss, Carpeaux e Cardim almoçavam num restaurante mais cheio de prosápias ali perto; a turma remanescente da redação, e eu junto, num botequim junto do prédio da editora, onde o melhor prato era um camarão à baiana servido numa frigideira onde os camarões boiavam numa lava fumegante de dendê (não sei como não tinha o maior piriri depois de comer aquilo, e comia os camarões na lava de dendê quase todo dia).

Me lembro das conversas com Carpeaux. Alguns da redação do L3 chamavam Carpeaux direto de Carpeaux — Carpeaux, vê isso aqui, checa esse dado, verifica tal informação, coisa que Carpeaux fazia sempre muito solícito. Mas eu, garoto de vinte e dois anos, só me dirigia a ele como Dr. Otto. Perguntei muita coisa a Carpeaux, que quase cercava pelos cantos. Por exemplo, como era Mahler regendo? Me contou que Mahler era baixo, muito magro, agitado no andar, e que regia com movimentos bruscos e irregulares. Me contou o tal encontro que teve com Kafka, cujo nome não compreendeu (Kauka? Nome estranho... teria dito). Conversamos sobre os Principia Mathematica de Whitehead e Russell, e também sobre Spengler. Ou sobre Freud e a Viena dessa gente toda.

Mas era difícil conversar com Carpeaux, muito gago, cheio de tiques, e evidentemente com dificuldade de articular certos sons do português, língua que no entanto escrevia tão bem e com tanta clareza, tanta limpidez. Doze anos depois, quando, em 1980, era um junior post-doc no Departamento de Matemática da Universidade de Rochester (NY), nos Estados Unidos, lembrei-me de minhas conversas com Carpeaux ao cercar, pelos corredores, outro remanescente daquele tempo, Volya Bargmann, assistente de Einstein e seu colaborador, a quem vivia perguntando sobre tudo quanto é coisa, a quem importunava para saber tudo a respeito de como era Einstein no convívio pessoal, como era o quotidiano daqueles que haviam feito a física do século XX, coisas assim.

No caso de Carpeaux, perguntava-lhe sobre como era o quotidiano da gente que havia construído a cultura do século XX, Mahler, Freud, Kafka, Spengler, Wittgenstein. As gentes que fizeram o século XX.

5 comentários:

Ricardo C. disse...

que maravilha esses encontros, essas conversas sobre luminares do século passado! Pena que ultimamente haja uma onda excessivamente anti-intelectual, deselegante e raivosa (e não divertidamente mal-humorada)...

Já estava preocupado, pensando que a série tinha parado!

Francisco Antonio Doria disse...

Continuo hoje: as festas de 1968.

Botei o Bargmann porque fui aluno dele em 1980, e bati muito papo com ele, perguntando sobre Einstein.

Sabe que Einstein era grandalhão, tinha 1, 85 m e o corpo de um lenhador?

Francisco Antonio Doria disse...

Minha mulher tá muito doente, de modo que vou mais devagar aqui. Mas vou continuar, pois o livro tem que ficar pronto - escrito - até fins de abril.

Ricardo C. disse...

Em primeiro lugar, estimo as melhoras de sua mulher.

E não tive essa fortuna, no máximo estive no mesmo ambiente que algumas pessoas que admiro, mas ninguém tão revolucionário. Lembro de ter ido assistir a palestras do Galbraith quando tinha 16 anos, tendo acabado de ler A Era da Incerteza. Na platéia, eu era o mais novo, mas lembro com orgulho de ter entendido tudo o que ele disse...
Em outra ocasião, conversei com a tia-avó de um grande amigo meu, judia austríaca fugida da guerra e vivendo em Boston. Ela contava que na adolescência dela, Freud era conhecido como "aquele ótimo escritor, que conta umas histórias muito peculiares", e não como o pai da psicanálise. Mas saber particularidades de Einstein, Witgenstein e tantos outros há de ter sido o máximo!

Francisco Antonio Doria disse...

De Wittgenstein, me correspondi muito com um antigo aluno dele, Georg Kreisel.