domingo, 23 de março de 2008

1968, XV - A moveable feast, III

A terceira grande festa aconteceu duas semanas antes do Ato 5, em fins de novembro de 1968. Foi dada em minha homenagem e em homenagem a Marcos Vasconcellos. Tinha feito, dias antes, vinte e três anos. Logo em seguida recebo um presente especial, as provas em paquê de meu primeiro livro, Marcuse Vida e Obra, a ser publicado pelo João Ruy, pela José Álvaro Editor, conforme combinado em casa de meu primo, dois meses antes.

Por que Marcos Vasconcellos? Marcos tinha uma casa em frente à casa do meu amigo que me oferece a festa e também fazia anos em novembro. Casa bonita a do Marcos, estilo clean, com uma piscina que dava vista para toda a Lagoa e para o Jardim Botânico, uma varanda sobre a zona sul do Rio. Foi nesta piscina e nesta varanda sobre o cartão-postal da zona sul que, meses mais tarde, Marcos recebeu um tenente do exército que lhe deu voz de prisão. Marcos estava com uma amiga; bebia uísque, o dia era ensolarado e de céu azul. O tenentinho apressou-o, vai se arrumar, o senhor está preso! Responde Marcos, antes toma comigo um uísque. Olha a paisagem. Olha a moça aí. Aproveita um pouquinho. Você não vai ter outra chance de beber um uísque tão bom. Olha a paisagem: sua casa não tem, nunca vai ter uma paisagem como esta. Olha a moça: você jamais vai comer moça tão bonita.

Vou preso com você, sim. Mas antes relaxa meia-hora e aproveita um pouco da minha boa vida.

(Agora, algo da história da editora, da José Álvaro Editor. Quem a fundou foi um jornalista do Correio da Manhã, nos anos 50, José Álvaro. Nos domingos escrevia uma coluna, J, J & J — não lembro quem eram os outros JJ. A José Álvaro publicou muita crônica, muita coisa de autor que despontava. Em meados dos 60, Zé Álvaro vende a editora para João Ruy. No pacote, um sucesso de vendas, a coleção Vida e Obra, com biografias de Freud, Jung, Brecht, todo esse povo. Nos anos 70 a José Álvaro passa para Fernando Gasparian, que havia comprado também a Paz & Terra, de Enio Silveira. E o José Álvaro original se muda para Petrópolis, onde faz jornalismo no Diário de Petrópolis e onde, enfim, vou conhecê-lo. Ficamos amigos, passo a escrever muito para o mesmo jornal, que ele, Zé Álvaro, termina editando, até sua morte em 1979.)

A festa em minha homenagem e em homenagem ao Marcos foi num sábado, o último daquele mês de novembro. Faço as contas: 30 de novembro de 1968. A casa onde fizemos a festa tinha três andares, e ficava meio acavalada na encosta da Floresta da Tijuca subindo para o Corcovado. Da rua até sua entrada principal eram uns quarenta e cinco, cinquenta degraus. Fui para lá ajudar meu amigo. Muita cerveja, uns dez engradados com aquelas garrafas antigas de cerveja, de vidro grosso, o casco marron. Coisa de supermercado para fazer as comidas. Tinha que ajudar a levar tudo para cima, subindo aqueles cinquenta degraus. Peguei a primeira caixa de cerveja, penei, parei bufando nos primeiros vinte degraus. Chego lá em cima arrebentado, sem saber como fazer para carregar as outras caixas.

Meu amigo me mostra: olha só, diz. Se curva, joga sobre os ombros o caixote, e sobe correndo, de uma vez só, os cinquenta degraus. Pergunto como ele, quinze anos mais velho que eu, faz aquilo. Responde bruto:

— Fui besta de carga em Buchenwald.

Meu amigo, judeu, estivera preso num campo de concentração nazista. Estamos, naquele momento, a vinte e poucos anos de distância do fim de Hitler, mas me assusto e me sobressalto, uma sensação de horror, momentânea, me agarra. Ele percebe e continua, esquece, estou aqui, e já é passado.

Voltamos à preparação da festa. As caixas todas de cerveja e de cocacola na cozinha e na copa, está na hora de um cochilo, e da gente tomar banho e se arrumar. Descanso, me banho, me visto, são nove horas, o pessoal vai chegando, vai chegando.

A festa enche. A casa era grande, mas a sala fica compacta de tanta gente. Não tem muita luz, tem música alta, tem gente dançando, gente se agarrando, gente ficando muito doida. Nalgum canto, fuminho correndo, gente sentada no chão, doidona.

Como de hábito, como nas outras festas, glitteratti e beautiful people. Vejo de relance algumas atrizes de cinema, está realmente escuro, mas parece que o pessoal do cinema novo baixou todo no pedaço. Uma das atrizes se agita mais; vou chamá-la Isadora. Vestida de branco, um vestido comprido e esvoaçante, molengo, Isadora está no meio da sala, junto de uma mesa baixa, mesa de centro. Pede música lenta, colocam alguma coisa mais devagar. Sobe na mesa, e começa a se despir, começa um strip. Todo mundo bate palmas, o ritmo das palmas é diferente do ritmo da música, mas ninguém ouve mais a música, só se ouvem as palmas e só olham para Isadora, que vai se despindo. Quando tira o soutien, grita, quem quer me comer? quem quer me comer? sou muito experiente, já fiz quatorze abortos…

Apago pouco depois disso, num dos quartos da casa. O domingo, primeiro de dezembro, acorda nublado. Não vai dar praia; e começa o dezembro do Ato 5.

Houve outras muitas festas em 68, claro. Por exemplo, a festa de despedida de Marcito, Marcio Moreira Alves, em fins de setembro, na casa de Heloisa Buarque de Holanda, no Horto. Mas muita gente já contou sobre esta festa — Marcito ia para a Europa, e deixou para trás toda a tempestade que desabou feroz com o Ato 5.

Vou contar, ainda, sobre uma última das festas do ano, uma festa que teve uns dez casais, se tanto; uma orgia, bacanal, suruba, dêem o nome que quiserem. Deprimente como filme de Antonioni, como La Notte ou L’Eclisse.

Um amigo me pega em casa, em Botafogo, o Beto, numa rural wyllis. Entro, vejo gente que não conheço; umas moças até que bonitinhas, uns carinhas desconhecidos. Me diz, vamos a uma festa no Alto da Boa Vista, no meio da Floresta da Tijuca.

Vamos pela Avenida Niemeyer. Em São Conrado, uma parada, para pegar mais um convidado — convidado? era tudo uma coisa improvisada, estava parecendo. Percebo que dois outros carros estão nos seguindo; param enquanto embarca o tal convidado de São Conrado. Mais velho que nós, todos pelos vinte e poucos anos; teria talvez quarenta anos. Era piloto da Panair, logo soube; desempregado, portanto. No fim de São Conrado embicamos à direita, pela Estrada das Canoas. Passamos o viaduto, descemos a estrada junto à Pedra da Gávea, deixamos para trás a Gávea Pequena, andamos mais um pouco e chegamos a um portão com dois marcos imensos, lado a lado, de pedra. Além do portão e dos marcos, uma estrada entrando num parque escuro — ainda assim, a noite estava límpida, era junho ou julho, e a lua estava cheia, ou quase, e iluminava os topos das árvores do parque.

Entramos. Passamos o portão, os três carros. Andamos muito, quase um quilômetro. Espero ver um castelo no fim daquela estrada, e de fato a casa era quase um castelo. Neocolonial, cercada de jardins formais, com uma piscina grande na parte dos fundos, depois vi, lembrava um pouco o antigo Solar do Monjope, já demolido, em frente ao Parque Lage, o Monjope, cenário de Terra em Transe.

Era enorme. Paramos em frente da casa, onde existiam uns janelões quase se abrindo para os jardins formais, debaixo de uma balaustrada, de um balcão se debruçando sobre os jardins. A entrada era pelo lado, através de uma porte cochère; era um portal imenso, com duas folhas. De um dos carros de trás vinha andando depressa o filho dos donos da casa, trintão, meio careca apesar de ainda moço, com uma penca de chaves. Estamos esperando na porta do casarão, eu, o Beto, o aviador que morava em São Conrado, um rapaz que não conhecia, e três moças (tinham ficado quietas toda a viagem), de microssaias, isso mesmo, sainhas meio rodadas mas ultracurtas, sapatos de salto tacão, como se usava naquela época, meias de nylon, caras até que bonitinhas, mas que não combinavam nada com aquela casa.

O filho dos donos da casa luta com as chaves, abre a porta. Entramos, um hall de mármore, grande; uma porta em arco abrindo-se para um salão de pé direito muito alto, tudo branco, neocolonial, o dos janelões e, no fundo, uma escadaria para o andar de cima. O dono avisa: não quero zona no quarto da minha irmã, fica aqui em cima, e aponta na direção da balaustrada sobre o jardim.

No fundo do salão um bar americano, tipo anos 50, móveis de pé de palito, bem cenário de filme da Atlântida, ou de história em quadrinhos, das primeiras, de Mickey Mouse. Um equipamento de som ao lado, ultra-espetacular, com altofalantes eletrostáticos.

Os dez ou doze casais enchem logo o salão. O dono da casa, Carlinhos, coloca duas ou três garrafas de uísque bom em cima do bar, e copos e dois baldes de gelo. E umas comidinhas, biscoitinhos salgados.

Mas estou distraído com os quadros nas paredes. Tinha uma paisagem de Antonio Parreiras; dois retratos, um homem e uma mulher, de Rodolfo Chambelland, e um óleo pequeno que me parecia Portinari, embora sem assinatura. Tudo iluminado com luzinha em cima (o homem e a mulher retratados por Chambelland, depois perguntei, eram os avós do Carlinhos).

Tenho que arranjar companheira, ou vou sobrar. Perto de mim uma moça moreninha no uniforme de todas, microssaia e sandália de tacão. Tem música, a gente dança. No meio da sala a mesa baixa inevitável, e uma das moças sobe ali e começa um strip — parece que mesa de centro de sala é como queijo de inferninho, mulher tem que subir lá e tem que fazer strip.

O ambiente é estranho; meio dissonante. Os casais se pegam, uns somem nos quartos (menos no quarto da irmã do Carlinhos, isso todo mundo respeitava, até porque ele lembrava a proibição de tempos em tempos), outros vão se guentando nos sofás da sala.

Até que o aviador de São Conrado, o piloto da Panair começa a falar. Fala baixo, mas as pessoas ouvem sua voz, mesmo que envolvidas nas transas de cada um. Fala da amargura da sua vida, da mulher que largou ele, dos filhos que queria ter tido, dos fracassos pequenos de seu dia a dia. Fracassos dolorosos porque medíocres. Infelicidades pequenas. Fala em voz baixa, desanimada. Fala como no refrão de A Canção da Terra, de Mahler, dunkel ist das Leben ist der Tod. Negra é a vida, negra é a morte.

Já tendo completado minhas atividades ali com uma daquelas meninas, ouço o aviador na sua fala insistente, fala de profeta. E vejo ao fundo, ao som da voz do aviador, uma cena erótica desesperada: um carinha sentado no sofá, uma moça com a cabeça no seu colo, alongada no mesmo sofá. Agarrava-se no corpo do rapaz, fazia um vai-e-vem furioso e sem fim com a cabeça, e o rapaz estremecia como se doente de dança de São Guido.

(De relance, agora, num flash de memória, uma cena semelhante. Ipanema, de tarde, tarde de outono, meio friozinha, chuvosa, no quarto de um apartamento dos anos 40 que ficava numa das ruas transversais cheias de árvores; este, o cenário. A namorada se aplica em trabalhos manuais e orais no namorado, que geme baixinho. A música de fundo era mais adequada, melhor que as lamentationes, os threni, do aviador — era Guiomar Novais tocando o concerto em lá menor de Schumann, o concerto de onde foi chuchada Besame mucho.)

E o aviador sempre falando do negrume da vida e do negrume da morte.

Cinco da manhã, surgia a filha da manhã, dos dedos de rosa a aurora. Vou até a balaustrada que dava para o quarto da irmã do Carlinhos ver o nascer do Sol. O parque da casa era imenso; como que continuava num mar de árvores até o horizonte, ao fundo, a Pedra da Gávea, os morros da Floresta da Tijuca. Carlinhos vai lá me pegar, reclamando, pois o quarto da irmã era off limits. Digo, estou só vendo o jardim.

Diz, tá na hora de ir embora. Não quero que o caseiro nos encontre; ele abre a casa às oito.

Deixo rhododáktulos eós, dos dedos de rosa a aurora, para trás. E também a negritude da vida do nosso bom aviador.

3 comentários:

Unknown disse...

monsieur dorià, j'ai appris par votre fils, la douloureuse nouvelle....ce petit mot pour vous embrasser et vous souhaiter du courage. mes amitiés e condoleances

confetti

Unknown disse...

Meu caro Francisco,

Deixo aqui para você os meus sinceros sentimentos de amizade e pesar nesse seu momento de dor e de saudade sem fim.

Um cordial abraço,
Manoel César

Francisco Antonio Doria disse...

Chère confetti:

c'est très très difficile. Merci pour vos voeux.

Manoel César,

Grato pela amizade e pelo abraço. E', de fato, horroroso. E vou ter que passar por isso...