Comecei como ensaísta em 1967, com vinte e um anos. Graças a meu pai, crítico de teatro — intelectual, portanto. Um dia, em 1966, mostro a ele um ensaio anarquista que escrevera: discutia movimentos de massas, e argumentava que todo movimento de massas, seguindo alguma liderança, tinha necessariamente que ser alienado. Movimento de massas é sempre alienação, concluía.
Papai gostou, pegou no telefone, marcou um encontro para mim com Paulo Francis, que editava ou co-editava a Revista da Civilização, e lá fui eu, manuscrito debaixo do braço, me encontrar com o Paulo no escritório da Paz e Terra, no Edifício Avenida Central. Sento na frente do Paulo, vejo aquela cabeleira cacheada, branca e redonda à volta do rosto redondo, os óculos de hipermétrope que lhe aumentavam imenso os olhos azuis, e espero o veredito. Paulo lê tudo rápido, são dez páginas, e diz, bom, é diferente, mas está bem argumentado. Vou discutir com o pessoal; vou ver se dá para a gente publicar.
Foi recusado. Moacyr Félix, editor-geral — depois ficamos amigos — me chama alguns dias mais tarde e me diz na bucha, é politicamente inconveniente, contraria tudo o que digo. Não dá pra publicar. Mas o Paulo me chama e acrescenta, sobre literatura, você escreve? Respondo: posso escrever. Que autor? Jorge Luis Borges (foi o primeiro em quem pensei). Ótimo, conclui; me dá um texto para o Quarto Caderno. 160 linhas, 20 toques. E me deu uma porção de laudas marcadas, de datilografia, do Correio da Manhã.
Sofri horrores no fim de semana para escrever o tal artigo sobre Borges. Rascunhei, revisei, re-revisei. Foram 160 linhas exatas. Entreguei ao Paulo 2a. feira. Lê em diagonal, me diz: sai domingo. Passei a semana toda agoniado; nem saí no sábado. Dormi em casa de meus avós, em Copacabana. Vovô assinava tudo quanto é jornal do Rio naquele tempo, o Correio, o JB, Diário Carioca — Neco, meu primo, Prudente de Moraes, neto, havia sido editor do DC — e mais o Diário de Notícias, O Jornal, e, claro, o Jornal do Commercio (digo claro porque vovô, advogado do Chatô e dos Diários Associados, era presidente da empresa que publicava o JC). Acordei cedo, avancei sobre a pilha dos jornais já separados para vovô. Sob os protestos de Bibi a governanta da casa, puxei o Correio, catei lá dentro o Quarto Caderno. Nada na capa, nada na página dois e na três. Mas — coração aos pulos — vi, embaixo, na quarta página, “À procura de Borges,” e ao lado do título, meu nome.
Na praia, naquele dia, em frente à Montenegro, a Claudinha, uma garota meio besta, fala comigo, Chicão, você viu esse artigo sobre Borges no Quarto Caderno? Meio diferente o que o autor diz dele. Respondi com cara sei lá de que, vi sim, fui eu que escrevi. E olhei ela nos olhos, pra sentir a surpresa dela. Tremenda curtição, esse momento, num domingo de primavera de 1967.
Minhas lembranças estão cheias de livros. Na casa onde morei primeiro, com meus pais, na Rua Dezenove de Fevereiro, em Botafogo, a sala de visitas, na frente, com janelas debruçadas para a calçada da rua, era em parte escritório de papai e de Vuvu, meu avô paterno. E tinha duas paredes cobertas de livros. Na casa da vovó, na casa de meus avós maternos, em Copacabana, existiam quase vinte mil livros, distribuídos no escritório de vovô, na saleta do primeiro andar, um pequeno escritório onde vovô, grande advogado, recebia clientes em casa, e no hall do andar do meio. Havia até um bibliotecário, que fichava, organizava e classificava todos os livros de vovô, o “seu” Matta, alto, de bigodes finos sobre os lábios, e orelhas de abano.
Vuvu, Raul Moitinho da Costa Doria, meu avô paterno, era um comerciante, mas seu irmão caçula, Tunico, Antonio Moitinho Doria, havia sido também um grande advogado, como meu avô materno. (Não se davam, embora advogados; odiavam-se cordialmente.) E Tunico escrevia bem; escrevia muito bem mesmo. (O Velho Justo, meu avô materno, tinha ao contrário um texto burocrático e sem colorido; era grande mesmo só nas defesas orais, nos tribunais). Subo pelas linhas familiares, à procura de talento literário: meu bisavô paterno, Diocleciano da Costa Doria, ou Doloque, era médico e político. Deixou poucos textos, além de sua tese de doutorado. Seu pai, José da Costa Doria, fora professor de primeiras letras no interior da Bahia, em Itapicuru. Depois interessou-se por teatro e foi um dos fundadores do primeiro teatro de Aracaju, em 1858.
E — afinal lembro que somos todos sobrinhos distantes do Padre Vieira, de Antonio Vieira, cuja irmã Dona Inácia casou-se em 1649 com meu antepassado Fernão Vaz da Costa Doria. Bom, conto tudo isso para dizer que, mesmo assim, não acredito em hereditariedade de talento literário. Mas acho que adianta muito você crescer no meio de livros, sendo incentivado a ler, a procurar as coisas, as questões, perguntas e respostas, por você mesmo. Mamãe me mostrava, na estante de Vuvu, uma porção de livros em francês, e dizia, você tem que aprender francês para ler Zola. Coitada de mamãe, dreyfusarde feroz, ainda que tendo nascido depois da reabilitação de Dreyfus: nunca li Zola, mas li Proust.
(Papai, Gustavo Doria, foi crítico de teatro de O Globo no final dos anos 40 e durante boa parte dos 50. Amigo de Nelson Rodrigues, criticou-lhe Perdoa-me por me traíres, junto com Bárbara Heliodora e Henrique Oscar. Foi achincalhado pelo Nelson, e se desencantou com a crítica. Tinha um escritório de advocacia, marcas e patentes, com mamãe, e no escritório uma carteira com muitas das maiores marcas brasileiras, cujo registro e manutenção os dois acompanhavam. Quase faliram: foi no período da inflação do Juscelino; recusavam-se a aumentar os preços, porque seria atitude indigna para com os clientes. Uso extremado, absurdo — evito outros adjetivos — do noblesse oblige em que nos banhávamos todos. Morávamos numa casa de vila em Botafogo, que eles transformaram, quase, num atelier de artista. Como papai era crítico teatral muito respeitado, costumava receber em casa muita gente de companhias estrangeiras, que iam curtir o cocktail de camarão que mamãe fazia, em sauce rosée, e beber Veuve Clicquot, ainda de preço razoável naquele tempo. E, assim, conheci em minha casa, em vila de Botafogo, gente como Jean-Louis Barraut e Madeleine Renault, além de boa parte do teatro brasileiro. Diziam todos sobre a casa: parece Montmartre, e papai se deliciava.)
Adianta muito, adianta imenso conviver com gente que pensa e escreve. Um dia chego em Copacabana na casa de meus avós maternos, em 65 ou 66, com um livro de Borges na mão. Neco, meu primo, Prudente de Moraes, neto, já disse, está na varanda grande do primeiro andar; me vê, me chama. Pergunta, que livro é esse, Francisco Antonio? Mostro-lhe: Ficciones, de Borges. Pega, examina, fala: fomos muito amigos, nos correspondemos muito nos anos 20. Enquanto a gente fazia o movimento pela arte moderna aqui, eles faziam movimento semelhante na Argentina.
Abre o livro, lê um pouco, sinto o Neco melancólico, fecha o livro e me devolve.
Aqui em casa são também 20 mil volumes. Mas lembro num flash o que um historiador disse de outro parente, um anquilosado marquês florentino: cervello molto bizzarro, aveva stupenda librería, che lui vivente andò dispersa.
Vou ficar assim?
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
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2 comentários:
Tô sentindo q isso aqui vai ser devorado como um livro.
Vc por favor coloque poucos posts por vez, pra ver se consigo me controlar e não perco o emprego por passar o dia com a fuça enfiada em blog alheio...
Na verdade tô negociando, sim, com meu editor para ele publicar como livro.
Acho que tenho que dar este testemunho. Afinal vivi — e ***muito*** intensamente - esse período. Foi muito, muito bacana.
Foi quando se criou a modernidade de hoje.
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