Já escrevia no Quarto Caderno desde fins de setembro de 1967. Escrevia sobre o que me vinha à cabeça: comecei com Borges, falei de Wittgenstein, emplaquei um novo sucesso de público, no finzinho do ano, com um artigo, “Henri Lefebvre x Estruturalismo,” no qual, defendendo o estruturalismo dos ataques de Henri Lefebvre (era a tal coisa, o estruturalismo negava os humanismos...), expliquei o que era estrutura, modelo, enfim, toda a fauna teórica dos estruturalistas.
(Conto de onde tirei minhas explicações: não vieram de nenhum livro de Lévi-Strauss, vieram das aulas, na Escola Nacional de Química, sobre sistemas de controle, dadas por meu amigo muito querido, Ieuda Ciornai. Depois de ler meia-dúzia de ensaios — franceses, esclareço — muito confusos, sobre estruturalismos et caterva, onde se falava a toda hora sobre estrutura e modelo, resolvi dizer com linguagem de livro-texto de engenharia, o que era aquilo, estrutura, modelo, simulação, e para que serviam esses conceitos. Ouvi de muita gente, ah, agora entendi o que é o estruturalismo. Melhor foi a brincadeira do Ieuda para mim: como M Jourdain que não sabia que falava em prosa, você mostrou que sou estruturalista sem saber...)
Em fevereiro de 1968 começa a onda Marcuse. Tinha lido um pouco antes sobre One-Dimensional Man no Time; não me chamou muito a atenção. Em começos de março, Paulo Francis, que editava o Quarto Caderno junto com Zé Lino Grünewald, me chama e diz, vai falar com o Jorge Zahar, que publicou dois livros de Marcuse e um livro de um dissidente da Alemanha Oriental de quem você vai gostar. Aliás, você vai gostar dos dois, de Marcuse e de Robert Havemann. Pega os livros com ele e me faz artigos a respeito, rápido.
(Sobre o livro de Havemann, Dialektik ohne Dogma?, falo mais adiante.)
Dia 12 de março, uma terça-feira meio nublada, de tarde, três horas, escapo de meu trabalho na Editora Delta e vou me encontrar com o Zahar, no escritório dele, em cima da Livraria Ler, na Rua México. Ele já estava com os livros separados, Havemann e dois Marcuses, Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial, título gênero o-filho-que-era-mãe para a tradução de One-Dimensional Man.
Bato uma hora de papo com o Zahar, tomo dois cafezinhos, e vou-me embora. Desço pela escada de fundos. Na escada, um encontro surpresa: Tio Luiz, irmão de mamãe, desce esbaforido, alucinado. Me vê, diz, vamos embora, vamos embora! O escritório de advocacia de vovô e Tio Luiz ficava no mesmo prédio, no quarto andar, de modo que não estranho encontrá-lo naquele canto. De qualquer modo não dei bola, ignorei direto o que ele dizia, e voltei para meu trabalho.
Chego em casa às 6 da tarde, pensando em tomar banho e trocar de roupa — ia ter uma vernissage badalada na Galeria Goeldi, na Praça General Osório, e queria chegar cedo, ia ser um ótimo lugar de paquera.
Bem dito, pior feito. Saio dos braços de Marcuse e Havemann e despenco no meio da linha-dura, dos coronéis de Aragarças e Jacareacanga. Chego em casa, a empregada está me esperando com um recado: vai correndo para a casa de seus avós, seu avô morreu e seus pais já estão lá. Tomo um banho urgente, troco de camisa — estava de terno e de terno fico, porque em 1968 ainda se usava terno em velórios e enterros — e vou tascado para a casa da vovó, que é como a gente, os primos do lado de mamãe, do lado Moraes, chamávamos a casa nossos meus avós comuns.
Chego pelas sete da noite, ou pouco depois. A casa, enorme, uma casa normanda no meio de um jardim que era quase um parque, na Rainha Elizabeth, entre Copacabana e Raul Pompéia, estava iluminada como se fosse para uma tremenda festança. Entro, e a primeira pessoa que vejo é Iná, Iná de Moraes, ex-mulher do Neco, do Prudente, e prima também. Contava para todo mundo, fui ao Jockey (a sede antiga no centro do Rio) e vi a porta fechada pela metade, como fazem quando morre sócio importante. Perguntei na portaria, qual é o defunto do dia? O porteiro sem jeito me diz, seu tio o Dr. Justo.
Vou até o andar do meio (a casa tinha três andares), ao quarto de vovô e vovó, onde vovô estava sendo velado. Estava amortalhado, no mesmo pijama em que havia morrido — fazia a sesta, de tarde, e morreu dormindo — em cima da cama. Mesma cara cesárea, nariz em gancho, sem sorrir, pois vovô quase nunca sorria. Pediu que o amortalhassem e que lhe dessem um caixão de terceira. A Santa Casa, de onde era alguma coisa importante, protestou, quis dar caixão de luxo; mamãe não deixou. No meio da noite foi posto no caixão de ripas, como havia determinado, e carregado pela escadaria principal da casa para a varanda grande do primeiro andar. Tinha algumas pessoas chegando para o velório; fiquei zanzando sem objetivo, falando com um e com outro, até quase cair de sono. Bibi, a governanta, mais atarantada que eu, servia empadinhas de queijo, ramequins, a toda hora. Uma da manhã, vestido como havia chegado, me estico nalguma cama e durmo. (Papai e mamãe aguentaram firme a noite toda.)
Tomo banho, troco de camisa de manhã, me desamassam um pouco o terno, e vou fazer sala aos que vão chegando para o velório. Uma porção de figurões do regime militar: Eduardo Gomes, o Brigadeiro, sua irmã D. Eliane, Juraci Magalhães, Juarez Távora, que depois fez discurso à beira do túmulo de vovô, o representante do Costa e Slva, e todos os aragarcianos, os coronéis das revoltas de Aragarças e Jacareacanga, Haroldo Veloso, Paulo Vítor, Leuzinger Marques Lima e Burnier.
Saí de Marcuse e Havemann para o meio da linha duríssima do regime. Estavam ali porque vovô havia sido seu advogado, e porque Tio Luiz, Luiz Mendes de Moraes Neto, tinha sido aragarciano também. (A gíria não é minha; eles é que se chamavam entre si aragarcianos.)
Família muito doida, a família de mamãe. De um lado Tia Maria, Maria Werneck de Castro, comunista histórica, companheira de Olga Benário, a quem ela e Nise Silveira chamavam Maria Prestes; do outro lado Tio Luiz, de extrema-direita. Até que nós, os netos, não saímos tão pirados assim...
Na hora da saida do enterro carregamos o caixão de vovô pelo jardim da casa, onde ele gostava tanto de passear. A polícia fechou a Rainha Elizabeth, de tanta gente que estava no velório. No cemitério, discursos do Ribeiro de Castro, pela OAB, e de Juarez Távora.
Voltamos, papai, mamãe e eu, exaustos para casa em Botafogo.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
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2 comentários:
afe maria monsieur dorià, quelle plume !! on dirait du...de la...du père du pd !! :)))
Du père de Pedro?
Il nous a visité hier :))
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