sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Por que o ódio contra a inteligência?


Conversei isso muito, hoje, com Margô, sobre o que segue. Primeiro, lembro da frase de Steve Weinberg, Prêmio Nobel de física em 1979: se não fossem as universidades de pesquisa, os Estados Unidos seriam hoje apenas grandes exportadores de soja. Lembra que país exportador de soja? Hem? Hem?

Tanto a família dela quanto a minha — e põe aí nossos ascendentes comuns — sempre exibiram gente com instrução formal. Ou gente que patrocinava a cultura. Lembrei de um Tourinho que o Caio Tourinho desencavou em Coimbra, começos do século XVII; era dos baianos e estudava cânones por lá. No século XIX, tem gente cultivada a dar com o pé, na família de Margô: Demétrio Tourinho, que implantou a cátedra de medicina legal na Bahia; Simplicio Coelho de Resende e seu genro Antonio de Sousa Rubim, bacharéis e jornalistas. No século XX, Tio Álvaro, Álvaro Rubim de Pinho, o grande psiquiatra baiano, o Doutor Rubim, que motivou o comentário de João Ubaldo: “cuca que doutor Rubim não desentorta, ninguém desentorta.” Simplicio, pai dela. Os três irmãos Madureira de Pinho, Péricles, Demósthenes e Demades.

O lado da parentela comum começa em Nicola Acciaioli (1310-1366), grão-senescal de Nápoles. Descendia de catadores de acerola, como se viu, mas quis dotar Florença de uma universidade, o Palazzo degli Studj, anexo à Certosa. Do ramo dos duques de Atenas foi Donato Acciaioli (1428-1478), humanista, tradutor de Plutarco, cujos filhos tiveram como tutor a Lorenzo il Magnifico.

(Mas na verdade houve um doutor em cânones, lontanissimo, entre os Acciaiolis, messer Leone degli Acciaioli, que trouxe para a Itália da Ásia Menor os despojos de S. Tomé, e que depois aparece como doutor em cânones, e membro da corporação de' giudici e notai em Florença.)

Os Dorias medievais são um bando de senhores feudais brutalizados, brutta gente, como diz Mariana, mas, surpreendentemente, há mesmo poetas entre eles, como Perzivalle Doria, poeta provençal, do dolce stil nuovo, e Isotta, Marquesa de Saluzzo, também poetisa. Começo, no entanto, a lista quase contínua dos intelectuais da família no Dr. Cristóvão da Costa, nascido em Lagos cerca de 1485, e falecido em Lisboa em meados do século XVI. Foi bacharel em cânones por Salamanca, 20.2.1512. Doutorou-se em leis por Lisboa, em fins da mesma década. Foi reitor da universidade de outubro de 1526 a novembro de 1527, depois de ter servido como vice-reitor do Dr. Jorge Cotão. Desembargador da relação de Lisboa, desde antes de 1520, chegou a seu chanceler, o cargo mais alto do judiciário português à época. Fernão Vaz da Costa, o segundo marido de Clemenza Doria, foi seu filho; deles descendo com uma quebra na varonia.

Fernão Vaz foi antes uma espécie de cavaleiro andante tardio, homem de ação. Mas, logo no século XVII temos uma cabeça brilhantíssima na família, o padre Antonio Vieira (1608-1697). De Vieira não preciso falar; descendo de sua irmã, D. Inácia de Azevedo, casada com Fernão Vaz da Costa, terceiro do nome. Vieira era próximo aos sobrinhos desse lado: apadrinhou no batismo o sobrinho-neto Manuel de Sá Doria, nascido em 1676, e teve o pai deste, Francisco de Abreu da Costa, também terceiro do nome, como seu representante e porta-voz em Lisboa.

Em começos do século XIX meu trisavô José da Costa Doria aparece como “professor,” num documento de 1833. Em 1857, em Aracaju, testemunha o ato de fundação do primeiro teatro de Sergipe. Seu filho Doloque, Diocleciano da Costa Doria (1841-1920) é doutor em medicina pela Bahia em 1869, e depois diretor de instrução e higiene públicas, em Santa Catarina. O neto Antonio Moitinho Doria, Tunico (1875-1950), funda a OAB, no Rio, é também jornalista, e deixa várias coletâneas de ensaios, num estilo maravilhosamente límpido. Não preciso citar os primos arquitetos, MMM Roberto, Marcelo, Mauricio e Milton Doria Baptista, filhos de Yayá, da primeira geração da arquitetura moderna no Brasil. De papai falo depois.

No lado Accioli, meu trisavô José de Barros Accioli Pimentel (1820-1879) forma-se em medicina pelo Rio, e é considerado o Pai da Medicina Alagoana. Seu filho o Cel. Accioli de Vasconcellos, a quem Alayr chamava Botão de Rosa, ainda que não tendo estudos superiores completos, interessa-se pela telegrafia, sobre o que escreve uma monografia, e publica o Guia do Imigrante para o Império do Brasil, quando era diretor-geral de terras e colonização no império. Ah, José Antonio do Valle, bisavô de Nhanhã, mulher do Coronel Accioli, Dona Maria do Carmo do Valle. José Antonio do Valle era um bacharel em cânones coimbrão, e teve funções como juiz. Chegou a tomar ordens menores.

Do lado Moraes, mais gente. Os bacharéis: Prudente o velho, Prudente de Moraes, Prudente José de Moraes Barros; Manuel de Moraes Barros, o Tio Manduca — tios trisavós. Meu avô, Justo de Moraes (1883-1968), pai de mamãe, também advogada. Um engenheiro, o bivô, Luiz Mendes de Moraes, general de divisão com as honras de marechal, ministro da guerra em 1909; gostava de ser chamado Doutor Moraes, e não General Mendes de Moraes. Também seu sogro, Justo de Azambuja Rangel, e o cunhado, Silvio Ferreira Rangel, Tio Silvio. Todos engenheiros, que projetam e constroem o ramal de Vassouras da estrada de ferro por lá passando.

E agora vejo que, do lado de vovó, Herminia Gomes de Mattos Cresta (1888-1977), temos também bacharéis e engenheiros. Bacharel em cânones, Filipe Gomes de Mattos, que recebe o grau em 8.7.1773, conforme me comunicou hoje o primo Estrela. Seu neto Antonio Gomes de Mattos Jr. é engenheiro naval; estuda em Portsmouth e é considerado Pai da Marinha Mercante Brasileira. Sua mulher — a Joaquina da Praia da Joaquina, D. Joaquina Rosa de Oliveira e Costa.

E não preciso falar da inteligência familiar recente: o Neco, Prudente de Moraes, neto, que morreu na presidência da ABI (1904-1977), Tio Emanuel, Emanuel de Moraes; papai; Francisquinho, Francisco Eduardo Accioli Rabello, conhecido na Faculdade Nacional de Medicina como o Rabellinho, porque seu pai, Dr. Rabello, meu tio-avô, fora também um grande médico, Eduardo Rabello Filho. Antonio Paes de Carvalho. Muita gente. Do lado de Margô, Tio Alvaro e o pai dela, Simplicio, senador amazonense pela UDN (1913-1962); os Madureiras de Pinho; Rafael Carneiro da Rocha, o homem de voz de catedral submersa, como o chamava pessoa amiga. Muita gente.

No Brasil de hoje, a inteligência é desprezada, e provavelmente odiada. Contrastes históricos: na Russia de Pedro o Grande e Catarina a Grande, ou na entourage de Cristina da Suécia, filósofos eram tratados como se da nobreza fossem. Em Portugal e na França, desde o século XVI, a condição de letrado tornava o bacharel, doutor, lente ou juiz, pessoa de status nobre — elevava-o à nobreza, noblesse de robe, como se dizia. No Brasil império, ao tempo de Pedro II, catedráticos possuíam automaticamente o “título de conselho,” isto é, eram “do Conselho de Sua Majestade o Imperador.” Ao tempo da república velha, sim, a república dos bachareis, os catedráticos eram funcionários equiparados, no nível e no status, aos ministros do supremo.

A derrocada começou no tempo dos militares, e se acentuou nos governos Collor, FHC e Lula. Hoje tem professor universitário de universidade federal ganhando dois, três salários mínimos. Por que esse ódio à inteligência?

Na imagem: em outubro de 1526, o conselho dirigente da universidade de Lisboa decide ir falar com o rei D. João III em Alcochete; acima a ata da reunião. A assinatura do Dr. Cristóvão da Costa, reitor em exercício, Cristofforus, está no alto à esquerda. (Reproduzido do Auctarium Chartularii Universitatis Portugalensis, ed. de 1973, vol. II.)

4 comentários:

Camillo Cresta disse...

Interessantissimo. Ho conosciuto i suoi nonni,a Rio,da giovane(1963 /67).Dona Herminia mi raccontò di quando,bambina, andava,ai giardini dell'Acquasola, di Genova,col non no Vittorio Cresta (Papà Vittorio).
Alla festa del 50°(?)anno di matri monio dei suoi nonni, conobbi anche, sua mamma,loro figlia, che mi disse del suo viaggio a Genova. Sarei,molto, interessato ad
avere più notizie sull'Ing. Commend. Antonio Gomes de Mattos, padre di mia nonna:Cecilia
Gomes de Mattos Cresta. I migliori saluti. Camillo Cresta

Unknown disse...

Camillo,

Sei nel Brasile o a Genova? Ho visitato Genova ma non ho cercato i Cresta, solo la ``brutta gente'' degli antenati Doria.

Qui si trova tuta la genealogia dei Gomes de Mattos, dopo il cinquecento. È famiglia molto antica.

Ciao, cugino caro,

Francisco Antonio

Francisco Antonio Doria disse...

Voglio dire, tutta...

Camillo Cresta disse...

Complimenti per la "poderosa" recherche e per il tuo italiano.
In altra sezione della tua "Bibbia"- A Joaquina da Praia da Joaquina (SC) e seu Marido - ho lasciato una lettera, più lunga che, forse, non hai visto.
Ciao. Camillo
Genova